sábado, 19 de julho de 2014

O dia vai terminando





No campo, o final de um dia ensolarado de inverno tem cheiro de terra, grama seca e dourada, sons distantes e fumaça de grimpa queimada. O sol indo iluminar outros quadrantes da terra e a sombra negra da noite se aproximando lenta e decidida, como uma maré que nunca falha. Os bichos alterando o canto, mudando de lugar, procurando abrigo para o período que se aproxima e a temperatura informando que a noite será fria. Orvalho começa a se formar e a roupa do corpo parece molhada ao toque, fria e úmida. A visão vai diminuindo e o horizonte encurtando, como se estivesse me empurrando para o abrigo da casa. Hora de alimentar o cachorro e abastecer de lenha o cesto para garantir o calor na casa durante a noite, que vem a galope e sem obstáculos. O frio no rosto já prenuncia o que vem.

Recolhido em casa, o fogo na salamandra vai espalhando o calor pela sala trazendo conforto e segurança que só o fogo pode. O cheiro de pão que emana do forno torna perceptível a magia operada na farinha pelo fermento e o calor, tornado aquela massa pálida, densa e fria, num pão dourado e aerado, leve, aromático e saboroso. Casa quente, pão pronto e exalando todo o perfume de sua alquimia, ponho na mesa o que vai me garantira a noite: pedaços de pão novo, fatias fina, muito finas de uma copa defumada, queijo serrano e uma manteiga amarelinha de dar gosto ainda maior ao pão. A taça de vinho embala tudo e leva ao estômago a energia que me garantirá o calor da 
noite.

Mais lenha na salamandra e uma olhada para fora mostra sombras negras sobre um campo prateado, denunciando uma lua cheia de respeito. Como um espelho redondo e irregular, o astro vai refletindo a luz do sol que ela ainda alcança, por estar mais alta. O vento brando e gelado faz o convite e me apronto com um abrigo grosso e boné. Pouco depois o xulé, meu cachorro parceiro, e eu estamos sentados no meio do campo, de frente para o disco iluminado da lua fazendo um brinde de um bom vinho com a noite. Fico ali até o frio me tocar de volta para a casa quente. O xulé assume seu posto de guarda externo, deitando na frente da porta da casa ao abrigo da área.
O dia que se foi trouxe a noite para compensar. Parece que ela quer mostrar que, quanto mais escura, fria e enluarada, mais vontade me dá de que venha logo um novo dia, claro e quente.  O sono vem ajudar nisso, abreviando o tempo e logo terminando com a noite, assim que domina o meu corpo. O sono é uma boa forma de abreviar a noite.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

O cheiro de cada um


Sei, por força do meu ofício de biólogo, que todo o animal tem seu cheiro próprio, uma espécie de identidade aromática individual. A pele dos mamíferos é rica em glândulas de vários tipos e funções, sendo que algumas secretam odores específicos e que podem diferenciar espécies e mesmo os sexos entre indivíduos do mesmo grupo.
Intrigado com este assunto resolvi, quando ainda era aluno na universidade, descobrir qual era o meu verdadeiro cheiro. Num verão daquela época fui acampar numa fazenda no Passo do Esse, na margem direita do rio Tainhas. O objetivo era descobrir o meu verdadeiro cheiro de mamífero humano, nascido e mantido limpo por 22 anos. O único material de higiene que levei foi a minha escova de dentes, o resto da mochila tinha roupas e comida.

Passei uma semana inteira sem sabonete, desodorante ou qualquer outro artifício químico que me removesse as secreções invisíveis da minha pele. Assim comecei a semana tomando banhos de rio sempre que o calor exigia, podendo ser várias vezes por dia, porque o calor era muito. Dia após dia fui notando mudanças na minha pele que ficou mais oleosa e mais resistente. A água era repelida cada vez com mais vigor, devido a gordura que se acumulava e que a água não removia, sem os sabonetes habituais.

Lá pelo quarto dia já sentia o meu cheiro próprio, não repugnante, mas forte e com uma identidade que me impressionou. 22 anos removendo estes elementos de identificação individual e de repente ali estavam eles, sem ressentimentos e com toda a sua força e característica. Misturado ao cheiro próprio, ainda tinha um toque de fumaça da fogueira do acampamento, que mantinha tudo com aquele cheiro de lenha queimada. O cabelo mais forte e mais duro, evidentemente, era alinhado apenas com os dedos. Sim, naquela época eu ainda tinha cabelos!


Descobri que é possível viver limpo sem usar de nenhum destes produtos de uso diário. Higienizava os dentes apenas com escova e água. Criei um cheiro próprio forte, constante, agradável e que me identificava profundamente com o ambiente onde eu estava vivendo. Socialmente é impossível viver desta forma, porque num ambiente de perfumes de vários tipos e intensidades, o cheiro de uma pessoa que não os utiliza, torna a convivência impossível. Sabia disso quando voltei e vi na expressão da minha mãe toda a angústia e preocupação: “por onde tu andou guri, vai tomar um banho. ”

Ali terminou minha experiência de conhecer melhor o meu cheiro. Levou quase uma semana para o meu cabelo voltar a ser como no dia que fui acampar. Ele simplesmente se recusava a ficar como antes. Parece que ouvia e sentia o protesto silencioso da minha pele dizendo que se recusava a voltar ao seu estado anterior, sem seus cheiros próprios. Agradou-me muito a experiência e compreendi mais um pouco da importância que os odores próprios desempenham nas sociedades dos animais. Seja para bem receber ou para bem rejeitar o indivíduo do convívio com o grupo.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

O ambiente natural de Canela, RS - Brasil


Canela é uma cidade serrana, assentada sobre uma série de nascentes de duas sub bacias hidrográficas. A maior é a do Rio dos Sinos e a menor a do Rio Caí. Dependendo de onde se está, observa-se que as águas correm para um lado ou para outro, dependendo para onde a chuva as atira, ou de onde brotam as nascentes. Desta forma ou elas correm para o arroio Caracol e daí para o Caí, ou são drenadas para o Arroio Quilombo, e daí para o Sinos. É uma cidade privilegiada pela sua geografia devido a abundância de águas e a mistura equilibrada entre campos de altitude e florestas com araucárias.
A zona urbana germinou a partir de um ponto favorável de terreno, como um abrigo natural contra os rigores do clima, e se expandiu para o leste, oeste e norte. O lado sul é escarpado e o mais florestado onde pode-se encontrar ainda uma faixa de vegetação nativa contornando a borda do planalto, na direção do vale do Quilombo e do Morro Pelado. Em direção leste, seguindo para São Francisco de Paula, é possível observar a substituição natural das florestas pelos campos de altitudes, nativos da região e utilizados a séculos para a criação de gado.


Com seus 835 metros acima do nível do mar, Canela tem um clima sub tropical de altitude, onde os invernos são rigorosos e com nevascas eventuais. O rigor do clima é um dos tantos atrativos naturais da cidade no inverno, trazendo visitantes de todo o Brasil, principalmente do norte e nordeste. O frio é o diferencial que encanta mas também espanta.

Araucária na zona urbana da cidade

A floresta de araucárias é uma marca registrada da cidade e da região, exibindo os imponentes pinheiros com seus galhos parecendo aranhas gigantes paradas no céu, ou guarda chuvas virados pelo vento que, na primavera, vem fazer a polinização das pinhas, garantido assim o pinhão do outono. Árvores únicas que só existem no sul do Brasil, as araucárias são relíquias que permanecem por aqui desde o tempo dos dinossauros, junto com os xaxins e outras poucas plantas que não se extinguiram.


Tucano-do-bico-verde, ave frequente nas zonas urbana e rural

Nesta floresta existe uma fauna espetacular, formada por mamíferos, aves, répteis e anfíbios que se utilizam dos frutos, folhas e sementes para sua alimentação. Bugios, tucanos, lagartos, serpentes, aranhas, insetos e uma legião de cogumelos e organismos microscópios fazem a cadeia alimentar se desdobrar em muitos níveis atestando a boa sanidade do meio ambiente.
O campo nativo, que resiste em algumas manchas na área do Palácio do Governo e alguns condomínios próximos, é o testemunho de um ecossistema que que abriga uma fauna diferente, formada por aves de maior porte e de mamíferos pastadores, como os veados e capivaras. Seriemas e gaviões carrapateiros podem ser vistos perambulando mesmo na zona urbana, movidos por motivos alimentares e de expansão de território.
Na zona urbana a vegetação nativa foi praticamente substituída por uma flora exótica originária de diversos continentes, motivado pela estética e pelo ornamental, como os plátanos, aceres e flores de todas as cores, tamanhos e formas que enfeitam jardins e praças. Uma fauna específica se adaptou a zona urbana, aproveitando-se dos abrigos, alimentos e ausência da maioria dos predadores naturais. Assim, sabiás, tico-ticos, saíras, gambás-de-orelhas-brancas, ouriços e muitos outros elementos são relativamente comuns nos jardins e parques da cidade.


Decoração alusiva as festividades do Inverno 2014
Viver por aqui é um exercício interessante, uma vez que exige disposição e resistência ao frio úmido do inverno, prolongado em alguns anos e que exige malabarismos de vestuário. O fogão a lenha e a lareira são elementos presentes em quase todas as casas, hotéis e pousadas. O cheiro de lenha queimada perfuma as ruas da cidade nos dias gelados, fazendo um contraponto interessante com o frio externo, convidando aqueles que estão nas ruas desfrutando o visual do frio a entrarem para participar do ritual do fogo, comerem um pinhão assado e beberem um chimarrão ou um bom vinho tinto. A fumaça da queima de lenha de acácia é como um sinônimo do inverno na região. As chaminés perfumam a cidade com sua fumaça branca anunciando a estação fria, como em Roma ela avisa a chegada de um novo pontífice. 


As festas se tornaram marcas registradas da cidade, como o Sonho de Natal, Festival de Bonecos, Festa da Colônia, Páscoa e Festival de Inverno que atraem milhares de pessoas de todo o Brasil de do exterior. Os finais de semana lotam de curiosos que se deliciam com as decorações sempre muito criativas e interativas, e aproveitam da excelente gastronomia oferecida nos restaurantes do centro da cidade.


Cachoeira do Poço, no Ecoparque Sperry
Canela é uma cidade de muitos parques naturais. Na sua zona rural existem muitos locais dedicados ao convívio com a natureza, sendo o mais visitado o Parque do Caracol. Na direção sul temos o Vale do Quilombo que abriga o Ecoparque Sperry, um santuário natural com cachoeiras e matas preservadas. Há no município mais de 20 parques naturais e temáticos, criando atração para todos os gostos e bolsos.
Assim é Canela, uma cidade serrana pequena, mas com um coração tão grande que pode abrigar qualquer um que venha conhecer suas virtudes, tanto aquelas da natureza quanto aquelas da zona urbana e de seus moradores.






quinta-feira, 5 de junho de 2014

No âmago do Vale do Quilombo


Base da Cascata do Trombão

Gosto de explorar um lugar novo, desconhecido e recentemente participei de uma caminhada pelo interior do Vale do Quilombo, partindo do Ecoparque Sperry, com um grupo de amigos e interessados inseridos no programa Ecoparque Explorer. Logo me vi na base da Cascata do Trombão, um lugar intrigante, sombrio e com um barulho de água caindo que abafa até os pensamentos mais profundos. O local remoto é um refúgio natural de fauna e com uma flora praticamente intocada. Dentro do mini cânion, moldado pela força da água ao longo dos milênios, segui o grupo pelo leito do arroio com suas águas cristalinas e de temperatura agradável. 

Leito do Arroio Trombão

Rochas de todos os tamanhos pavimentam o caminho abraçadas por cipós e raízes de diversas espécies de arbustos e árvores. Nas cheias do inverno árvores e arbustos são arrancados, triturados e jogada para frente, formando depósitos impressionantes de material de todos os tipos, tamanhos e texturas. Estes mesmos depósitos, juntos com as pedras, vão formando anteparos que mudam o curso do arroio e o fazem lamber a outra margem, cavando e arrancando outras árvores. É a dinâmica do leito do arroio. Natural como a chuva e o vento. Isso torna a caminhada interessante devido a diversidade de locais, formas e quadros naturais formados ao longo do percurso.

Encontro dos arroios Trombão com o Quilombo

Chego no ponto onde o Arroio Trombão deságua no Arroio Quilombo formando um local ideal para banho. Com água pelas canelas e desviando de pedras lisas, sigo o leito do Quilombo através de belíssimos lajeados cobertos pelas copas das árvores altas permitindo uma caminhada tranquila pelo leito rochoso emoldurado por bromélias floridas, figueira gigantes exibindo suas raízes tabulares e muitas espécies de samambaias e musgos cobrindo barrancos, troncos, raízes e rochas.



Toca dos Bugres, com a cachoeira à esquerda


A caminhada pelo leito é interrompida no topo da Cachoeira da Toca dos Bugres. A visão é espetacular pela altura e arrojo da água a quase trinta metros abaixo, formando degraus no leito que atiram as águas em um poço escuro abaixo. Todos deslumbrados, apreciam a seu modo o lugar. Sentados olhando, andando e fotografando, conversando.... A esquerda visualizo a entrada da grande gruta dos bugres. Contornando pela esquerda, chego a base da cachoeira e assomo a caverna ampla, alta na boca, como uns dez metros de altura e vai morrendo em zero como uma cunha de ar que abriu a pedra e formou um abrigo natural. 

Cachoeira da Toca dos Bugres, Arroio Quilombo

A cachoeira da Toca dos Bugres vista de baixo  é espetacular. Os degraus bem visíveis tornam o visual ainda mais impressionante, espalhando a água branca por fios e cascatas de vários tamanhos e volumes. Um lugar realmente diferenciado e digno de uma jornada de reconhecimento, feito aqui pela equipe do Ecoparque Sperry, e que não deixa outras sequelas que não a de roupas e botas molhas e embarradas, daquele jeito que, quando em casa, dá vontade de não lavar e deixar como recordação de um dia muito especial. Sem falar na ânsia de descarregar as imagens no notebook e apreciar o dia transcorrido. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O dia a noite e o céu de São José dos Ausentes, RS


O céu de São José dos Ausentes é o mesmo que cobre Canela, onde moro. O que muda então? O que o torna aparentemente diferente? Acho que é a soma de alguns fatores, a começar pelo horizonte amplo e com quase 180° de visibilidade. O campo dobrado com suas coxilhas arredondadas e destacadas no meio da paisagem permitem uma visão paradisíaca do ambiente. O pincel invisível que pinta as nuvens, cria verdadeiras obras de arte efêmeras como a sombra que projetam no campo. Os riscos paralelos foram de pinceladas rápidas, com pouca tinta, Já os acumulados denunciam o repouso do pincel, como se o criador do quadro estivesse pensando o que fazer. No conjunto, a obra mutante é um espetáculo.

Durante o dia ou à noite, o espetáculo é garantido porque se a lua está cheia, ou quase, a luminosidade tênue e prateada pinta a mesma paisagem com outros tons, como se dois quadros fossem pintados por dois artistas a partir do mesmo ponto.


Araucária em campo nativo 

Uma araucária isolada no campo parece o pincel que pita o céu, com seus galhos apontando para o alto, tangíveis no azul infinito. O quadro do dia,  com suas cores vibrantes e claras, faz o verde se destacar no fundo azul. No solo  a grama amarelada denuncia o final do verão, época de mudanças cromáticas na paisagem. A luz quente e clara do sol alegra tudo, fazendo as aves revoarem, cantarem ou gritarem, dependendo da sua genética. Tudo assume um ar de festa com a luz que tudo mostra e aquece.




Araucária em campo nativo sob a luz da lua cheia


Voltando ao mesmo local a noite, vejo o azul do céu escurecido, o que permite a visualização das milhares de estrelas que vivem espiando nosso planeta. O verde fica indefinido e as estrelas das Três Marias se abrigam sob os galhos da araucária, como se estivem procurando abrigo nesta imensidão do céu sem um local para se abrigarem do vento. O capim, pardo pela falta de luz, continua apontando suas espigas com sementes para cima, a espera do vento que as levará para longe, garantindo a nova geração do capim-caninha, nativo destes campos de altitude. O silêncio e o ar gelado do momento me remete as noites de acampamento, quando vagava pelos campos dos aparados da serra em noite de boa lua cheia.




Rio Silveira, São José dos Ausentes

A visão pela manhã do vale do Rio Silveira enche a alma com uma mistura de encanto, cores e estupefação. Fico olhando o quadro dinâmico e mutante a minha frente, vendo a água mudando de lugar e as sombras explorando outros recantos, escurecendo o que estava iluminado e deixando a luz mostrar o que escondera à pouco. Lentamente, de leste para oeste, esta mutação de cores e luzes vai migrando, assim como a temperatura que sobe, como se estivesse com ciúmes da luz
que pinta tudo de uma beleza rara e deixa o ambiente cada vez mais iluminado.


Rio Silveira sob a luz da lua cheia.



A noite, no mesmo local, a luz da lua cheia permite a visualização de alguns fantasmas e fazendo o movimento das águas do Rio Silveira parecer um caudal de prata líquida e fria, algo só possível no imaginário de quem está diante deste imponente e barulhento elemento natural com o espírito preparado e desarmado para ver aquilo que ali se apresenta. A noite o campo torna-se um lugar de respeito aos sentimentos que emergem da memória e saltam para fora, compondo o quadro, junto com a lua que abre passagem pelas nuvens no leste do vale. Pensamentos e paisagem se misturam e dançam  a música inaudível da paisagem. Passar um dia e uma noite por aqui me faz ver como a natureza pode ser impressionante, mesmo sem a presença do homem. Aliás, acho que é por isso que ela me impressiona.






domingo, 1 de junho de 2014

Cogumelos, conhecimento e culinária.




Suillus luteus, comestível.
Ver um cogumelo qualquer em um campo ou sobre um tronco morto de alguma árvore é ver apenas a ponta de um processo muito complexo e invisível. Na verdade o cogumelo é apenas uma fase da vida de um fungo que vive sobre a matéria orgânica morta. Os fungos tem um corpos longos, ramificados como raízes, esbranquiçados, quase sempre invisíveis e são um dos maiores responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica nos solos do planeta.
Infiltram-se nos tecidos mortos de plantas e os digerem lentamente, transformando troncos, galhos, folhas, etc. em produtos reutilizáveis por outros organismos do mesmo ambiente. Fazem um trabalho silencioso e importantíssimo sob a óptica da sustentabilidade da vida na terra.

Quando estão bem desenvolvidos e as condições externas são favoráveis, eles enviam ao exterior os responsáveis pela liberação dos esporos, as micro estruturas que, como as sementes de plantas que conhecemos, tem a capacidade de formarem novos fungos em novos lugares. Assim surgem os cogumelos, ou “chapéus de cobra”, como são popularmente conhecidos. Nesta hora os fungos do solo se tornam visíveis e nos permitem a sua identificação.

Auricularia sp - comestível
Sendo a maioria desconhecidos completamente pela população, paradoxalmente eles encantam e causam apreensão nas pessoas. O desconhecido sempre é encarado com desconfiança e é assim com os cogumelos também. Não temos aqui no Brasil o bom hábito de colher cogumelos silvestres e transformá-los em ricas refeições nutritivas e saudáveis. Na Europa é recorrente o hábito de nos outonos as pessoas seguirem para bosques e campos atrás destas iguarias. Eles conhecem os bons para a mesa e os impróprios. Está no comportamento dos povos. Aqui ainda não desenvolvemos este hábito, com poucas exceções, apesar te termos em nossos ambientes de matas e campos, uma riquíssima variedade de espécies próprias para consumo humano. Neste outono já fiz vários pratos com pelo menos três espécies de cogumelos que coletei aqui no sítio onde moro, no Vale do Quilombo. Basta uma volta pelas matas e uma cesta para acomodá-los e preparar uma refeição completa. Vale a pena investir em um pouco de conhecimento sobre este assunto porque pode muito bem nos trazer grande satisfação à mesa, além de se um produto essencialmente natural e colhido direto da natureza, sem problemas de contaminação por agrotóxicos ou outros elementos químicos.


Lactarius deliciosus - comestível.
Preste mais atenção em suas caminhadas neste outono e perceba a variedade de cogumelos que surgem em todos os lugares. Informe-se em guias de identificação com fotos ou com algum especialista e não deixe de experimentar esta iguaria que tem gosto de natureza. A foto ao lado é de um Lactarius deliciosus, nome científico porque não tem um popular ainda, de um dos mais saborosos cogumelos que nesta época estão por toda parte onde tenha pinus, sua árvore favorita para compartilhar o seu modo de vida. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Por dentro do Itaimbezinho



Um dia do verão de 1977 ou 78, não lembro bem, um grupo de seis colegas parceiros de aventuras da minha turma da Biologia da PUC, seguiu de ônibus de Porto Alegre para Cambará do Sul. Pouco antes de Cambará, saltamos e caminhamos uns 15 quilômetros até o parque por um acesso que hoje está fechado. Acampamos uns dois dias por lá caminhando por cima e conhecendo detalhes da geografia que hoje é vedado aos visitantes, como um pinheiro multissecular que tem junto a uma floresta primitiva de xaxins,
porque naquela época, era possível caminhar pelo parque todo. Numa madrugada bem cedo, ainda meio escuro, começamos a descida pelo vértice, ali onde hoje tem um mirante que se vê o início da fenda. Decida difícil por ser muito íngreme o local provocando escorregões e tombos de pequena importância, mas fomos seguindo com calma e cuidado. Chegamos ao fundo do vale e nos deparamos com o poço da cascata das Andorinhas.
É ali o grande obstáculo inicial. Como atravessar aquele poço com água batendo violentamente pela direita e um paredão de rocha negra e lisa a esquerda.  Só nadando uns 20, talvez 30 metros até o outro lado. Sem um plano B, amaramos bem as mochilas às costas, não sem antes isolar o máximo de roupas e alimento em sacos plásticos, e cada um foi nadando do seu jeito até a outra margem, tentando manter a mochila ao máximo fora da água. Com tudo molhado, menos o que estava bem embalado seguimos pelo leito do rio do Boi e acredito que foi ali que comecei desenvolver a habilidade de saltar pedras e evitar quedas em trechos de rios e arroios. O resto do dia foi este o exercício, cruzando inúmeras vezes de uma margem a outra e seguindo devagar e firme pelo lugar mais fácil, ou menos difícil. Num trecho o rio do boi simplesmente some, correndo por galerias subterrâneas formadas pelas toneladas de rochas de todos os tamanhos que, com o tempo, vão se desprendendo dos paredões laterias com os movimentos provocados por trovoadas e pela ação erosiva da água. Apesar do dia esta ensolarado, a penumbra era permanente no fundo do vale. 

Perto do meio dia a surpresa: o sol começou entrar e iluminar o cânion por dentro, alegrando e aquecendo a todos. Primeiro a luz veio pintando a parede leste e, devagar como um passeio de tartaruga mas firme e constante como as águas de um rio de planície, veio descendo até o fundo, clareando pedras e água, musgos e líquens, insetos, plantas e pessoas. Na mesma velocidade preguiçosa, foi subindo o lado oposto até desaparecer, me deixando com uma ponta de inveja pela capacidade que a luz tem de ignorar obstáculos.  Paramos para reverenciar o fenômeno porque sabíamos que duraria pouco, e assim antes da uma hora da tarde estávamos novamente na sombra do vale.

Terminamos o dia bem na altura do cotovelo, aquela primeira grande curva que o Itaimbezinho faz em direção ao leste e que se observa em cima, no Mirante do Cotovelo, no final da trilha homônima. A nossa direita descia a água da Cachoeira Véu de Noiva, vista de cima no mirante do Cotovelo. Contrariamente ao caso da cachoeira das Andorinhas, aqui não se forma um poço devido ao vale ser mais largo e o  volume de água ser menos. Assim foi tranquilo a passagem pela base desta imponente queda de mais de 700 metros. Lá escolhemos as pedras mais altas e nos instalamos para comer e dormir, já que a prudência dizia que qualquer chuva forte nas cabeceiras do rio Perdizes poderia inundar o vale rapidamente. A noite passou tranquila, sem incidentes e apenas com o murmúrio do rio se debatendo contra as pedras do seu leito. Fiquei olhando aquela faixa estreita de estrelas que se abria acima de nós e senti a opressão e o encanto do elemento natural pouco convencional.

Na manhã seguinte continuamos caminhando pelo leito do rio e notamos uma progressiva abertura da parte superior do cânion, indicando seu alargamento natural. Sem vestígio algum de pessoas e raros animais, seguimos o dia todo em uma caminhada mais tranquila, com pedras menores e o rio um pouco mais largo, o que foi facilitando o deslocamento do grupo. Muitos lugares para se tomar bons banho e inúmeras cachoeiras menores enfeitam todo o trajeto, ficando impossível saber seus nomes, com exceção das duas citadas no primeiro dia que são as maiores.  Num determinado ponto encontramos as maiores gúneras, também conhecidas com urtigão, que já vi até hoje. Cada uma de suas folhas gigantes tinha mais de dois metros de largura, podendo envolver completamente um de nós. São plantas raras e que só se desenvolvem nestas gretas dos aparados da serra e em alguns locais do Andes.


Final do segundo dia e todos feliz, sujos, molhados, saudáveis e famintos, chegamos a civilização, e nos vimos em pleno centro da cidade de Praia Grande, em Santa Catarina onde passamos a noite, que já chegava pesada e negra. Pela manhã seguimos de ônibus até Torres e de lá para Porto Alegre. Nos últimos lugares de trás do ônibus estava um grupo de jovens esfarrapados, sujos, com mochilas e roupas ainda molhadas mas com uma felicidade absurda na alma, algo que nunca mais se apagou de nenhum de nós.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Caminhando pelos Campos de Altitude do Rio Grande do Sul




Numa manhã deste março quente e seco, sai para uma caminhada aleatória pelo campo, sem muito compromisso além daquele habitual de olhar, ouvir, fotografar e interpretar a paisagem. O capim caninha está no final de seu ciclo anual e as hastes que escaparam das bocas do gado, agora estão içadas o mais alto possível com suas sementes prontas para serem lançadas ao vento. Como lanças apontando para cima, tornam-se progressivamente douradas a medida que amadurecem e o que vejo agora neste final de março é um mosaico de campos dourados e verdes. Verdes onde o pastoreio foi mais intenso e assim as folhas da grama predominam. Dourados onde, por algum motivo, o pastoreio foi menos intenso e a produção das hastes reprodutoras é maior. Assim em alguns lugares haverá menos sementes do que em outros, mas como é o vento o elemento que fará o transporte destas minúsculas partículas, a geração seguinte está garantida.

Vale do Rio Silveira, São José dos Ausentes, RS
Caminhar pelo campo nesta época é como apreciar o tempo, sabendo-se que um ciclo está encerrando e vendo um novo que se inicia, com outras cores e aspectos. O gado, gordo e bem formado, mostra que a estação de pastagem foi boa e há reservas acumuladas para enfrentar o inverno que se aproxima. Passo ao lado de uma meia dúzia de bois tranquilos, alguns de pé outros deitados na borda de uma matinha de araucárias exercitando o ritual babão da ruminação do capim ingerido anteriormente. Olhando com atenção é possível ver o bolo de capim regurgitado, revelado pelo volume na parte de baixo do pescoço, subindo como uma bola apressada até a boca, onde vai ser mastigado e salivado com a calma bovina que lhes é peculiar.
Sigo por uma trilha de gado que serpenteia o campo e já ouço a frente o som da água correndo e se debatendo contra as rochas do leito do Rio Silveira, aqui em São Jose dos Ausentes. Surpreso, vejo surgir por trás de uma elevação do terreno um casal de seriemas andando com a calma própria de quem vive em um lugar silencioso e tranquilo, concentrados na busca de pequenos animais do solo e brotos de ervas campeiras. Parecem bem camuflados pelo capim alto e de coloração semelhante à das suas penas e patas longas. Sigo olhando e cheirando e me assusto com um bando de pica-paus-do-campo, ariscos e barulhentos, que alça voo com estridentes protestos pela minha presença, pousando mais adiante em rochas salientes no campo e em velhos mourões de cerca, cabeludos de líquens e cansados de segurar os arames, mais vergados do que eretos.

 Rio Silveira, São José dos Ausentes, RS
Sigo adiante me deleitando com os cheiros e a paisagem e vejo um falcão quiri-quiri, pequeno em porte mas eficiente na caça como um gavião grande. Usando a cerca como poleiro, fica atento a tudo que se movimenta no campo e que pode ser um item de sua dieta. Entro na mata e, antes de ver, ouço um bando de gralha-azul, gritando e avisando a todos a minha chegada. Vejo que estão se alimentando de algum fruto ou semente, algumas próximas do solo e outras nos alhos altos dos pinheiros. Não sossegaram enquanto não desapareci da vista. No final da trilha chego a um mirante natural de pedra que me mostra uma bela cachoeira, não muito alta, que me chama para um banho. Não resisti ao apelo mudo e calmo da água e me entreguei ao exercício de deixar a água fria levar meu calor e me imprimir um prazer indescritível de bem estar. É bom deixar a água fazer o que ela mais sabe. (Esta narrativa de trilha segue em uma coluna futura)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Os caminhos do gado




O gado foi introduzido no Rio Grande do Sul por volta de 1628 pelos Jesuítas lá pela Região Missioneira, bandeados do outro lado do rio Uruguai. Animais estranhos a paisagem, trazidos inicialmente da Europa por navios a vela, aqui logo foram se adaptando e ocupando espaços na vastidão dos campos que havia em mais da metade da cobertura vegetal natural do Rio Grande do Sul. Lentamente foram se multiplicando e se espalhado por onde havia campo nativo, e aqui pelo Campos de Cima da Serra, no nordeste gaúcho, chegaram também com os Jesuítas quase cem anos depois, fugindo das Missões, uma vez que eram vítimas dos assaltos dos Bandeirantes paulistas que vinham prear escravos indígenas.

Logo surgiram as fazendas e estâncias de grande porte aqui na região serrana, dividas por quilômetros de taipas de pedras feitas com mãos de escravos negros e índios.  Lentamente o gado foi imprimindo uma morfologia típica em alguns lugares acidentados, formados por coxilhas altas e íngremes. Estes bovinos tem uma tendência de se deslocarem pelas curvas de nível dos terrenos acidentados, economizando a energia que gastariam para subirem ou descerem em linha reta ou em diagonal.

Na foto ao lado é possível ver o gado se deslocando pela encosta de uma coxilha alta e as marcas deixadas pelas trilhas paralelas que, vistas de longe, dão a impressão de degraus ou patamares bem nítidos ao longo da encosta. Visões semelhantes, mantidas as proporções, são as dos patamares de plantações de arroz que se veem em países orientais, como China e Tailândia. Quando a necessidade obriga, homens e animais mostram um padrão semelhante de adaptação na utilização dos terrenos adversos. Os orientais pela necessidade de terem terras planas para irrigarem o arroz e aqui os bovinos pela sabedoria de menor esforço diante de um terreno tão adverso.
Quem anda pelo campo nestes locais percebe que nestas trilhas do gado os cascos, com a paciência bovina de anos seguidos, aplainam o terreno e criam uma trilha perfeita para o deslocamento deles e de pessoas. Profundas as vezes e cobertas pelo capim em outras, são excelentes para uma caminhada pelos costados destas altas coxilhas gramadas.

Uma vez escapei de uma situação perigosa quando fui surpreendido em uma caminhada pelo campo com a chegada de uma cerração densa, lá pelas bandas do Itaimbezinho. Sentei e fiquei pensando em como me orientar, já que não enxergava a palma da minha mão a frente. Só lembrava que estava indo em direção oposta à da fazenda que estava. Apalpei o terreno e encontrei uma destas trilhas de gado, virei para a direção oposta e calculei que a trilha deveria ir até a fazenda, um caminho natural do gado. Com a ponta das botas ia identificando o terreno nu da trilha e assim fui indo lentamente por mais de uma hora até chegar num local em que o nevoeiro começou a enfraquecer e me mostrou os contornos do galpão e logo o das casas da fazenda. Fui salvo pelos cainhos do gado.



sexta-feira, 18 de abril de 2014

O banho de rio e o fogo




banho na Cachoeira do Poço, no Ecoparque Sperry, Canela RS
Durante a história evolutiva do homem os rios, lagos e oceanos estiveram sempre presentes, marcando a memória ancestral assim como o fogo, a sede e a fome. O rio e o fogo estão muito ligados a minha vida e sempre me deram prazer e relaxamento em geografias tão distantes e diferentes como a montanha e a planície. Num banho de rio a água passa pelo corpo arrancando e levando por diante dores, suores, medos, más lembranças e o calor que incomoda. Tudo segue rio abaixo sem que ele me cobre nada por isso, deixando o corpo em sossego e com um agradável alívio térmico de um bom banho de chuva. O banho de rio é uma troca, onde aquilo que me incomoda é o que a água leva, e o que me faltava, ela traz. Assim é um banho de rio, um exercício completo de relaxamento e reencontro com um elemento da natureza vital e insubstituível.

Curva do Arroio Quilombo no  Ecoparque Sperry, Canela RS
Sempre se renovando, a água de um rio nunca passa duas vezes pelo mesmo lugar e isso faz com que ela me trate sempre como se fosse o primeiro encontro, com toda a sua gentileza de levar o que me incomoda e presentear com o que tem de melhor. Talvez este seja o grande segredo e por isso é sempre muito revigorante e surpreendente. Como um cachorro que gosta muito do seu dono, as vezes o rio quer nos manter juntos para sempre, criando situações sinistras de posse que acabam em tragédia. Mas sabendo lidar com ele, podemos usufruir de sua infinita bondade e habilidade em nos proporcionar momentos agradáveis.

Fogo de acampamento
O fogo, complemento natural da água quando estamos acampados, faz o contraponto perfeito para o equilíbrio de um prazer onírico e atávico, envolto em algum mistério que nos eleva junto com a chama a uma altura invisível.
Curiosamente a água, que nos acalma com seu prazer refrescante, consegue apagar o fogo que nos aquece, parecendo que sente ciúmes das chamas que se elevam e iluminam tudo e todos em volta, coisa que não pode fazer com seu corpo líquido, amorfo e sem luz. Ou talvez o fogo queira ser maior que o rio, quando se alastra em grandes incêndios, e aí a água desce e acaba com a sua pretensão descabida, mostrando que cada um teu seu reino, função e espaço, sendo que o encontro dos dois é ruim para o fogo, já que se extingue e a água, ao sofrer o impacto com as chamas, muda para o estado de vapor, podendo assim fugir para cima e se esconder nas nuvens.    



segunda-feira, 14 de abril de 2014

O Lobo-guará



Os lobos sempre habitaram o imaginário das crianças e na forma mais perversa. Eles sempre eram os vilões das histórias, comedores de gente e que botavam medo nos personagens de histórias infantis que se passavam em áreas com florestas. De fato, havia muitos lobos nas florestas da Europa na Idade Média e estes canídeos imprimiam grande medo nas pessoas e isso acabou entrando na literatura infantil e se perpetuando como sendo um sinônimo de algo ruim, perverso e devorador.  A caça e a ocupação humana extinguiu o lobo na Europa há mais de 150 anos. Somente nos últimos 15 anos é que novas populações de lobos provenientes do leste europeu, recomeçaram colonizar as floresta do oeste. Nos Estados Unidos também tem lobos nativos e eles quase foram levados à extinção, assim como seus parentes europeus. Ainda há populações de lobos selvagens em parques nacionais, como o Yellowstone onde são bem estudados.
Na América do Sul não há lobos como os do hemisfério norte, mas aqui temos uma espécie de cão selvagem de grande porte que os índios já chamavam de Aguará. A composição de Lobo-guará foi provavelmente uma alusão que os colonizadores fizeram a este nosso canídeo em lembrança dos lobos da Europa, que eles bem conheciam.
O lobo-guará é um típico canídeo brasileiro, tendo seu centro de dispersão e maior ocorrência na região do Cerrado no Brasil Central. Sem dúvidas é o maior cão selvagem do Brasil e infelizmente encontra-se ameaçados de extinção. Animal de porte notável, com mais de um metro de altura, tímido e predador de aves e pequenos mamíferos, é raramente visto ou ouvido. Sua extinção está traçada mais devido à destruição do seu habitat do que pela caça. A expansão das lavouras de soja, milho e algodão do Centro Oeste brasileiro, destruiu o maior reduto deste carnívoro. Com poucos espaços restantes, eles começam se deslocar mais para encontrar comida e acabam caindo em outra armadilha: o atropelamento em estradas.


Há 22 anos, criamos um programa de Educação Ambiental aqui em Canela denominado Projeto Loboguará e este nome foi escolhido devido a três fatores importantes: o lobo-guará é o maior cão selvagem nativo do Brasil e da América do Sul; ele está relacionado na listas das espécies reconhecidamente ameaçadas de extinção; ainda há registros de lobo-guará na região dos Campos de Cima da Serra em São Francisco de Paula e Cambará do Sul. Com a constante divulgação dos hábitos e costumes desta espécie, acreditamos fazer uma parcela de esforços no sentido de conscientizar as pessoas mais jovens da importância de se evitar a extinção de uma espécie. Os Ingleses extinguiram uma espécie de graxaim das ilhas Malvinas para poderem crias suas ovelhas. Na Austrália eles extinguiram o Lobo da Tasmânia pelo mesmo motivo, cujo último indivíduo morreu em 1936 em um zoológico. Extinção é para sempre, e perdermos um animal como o Lobo-guará é perdermos uma parte importante do nosso patrimônio natural. E pior do que isso, o fato é irreversível. Para salvarmos nossos carnívoros nativos, como o Lobo-guará, temos que manter seu habitat para que neles encontrem abrigo, alimento e local para criar os filhotes. 

O alerta do por do sol



Vale do Quilombo, Canela - RS

O final de uma tarde ensolarada é como um lamento de cores de tons laranja, amarelo e vermelho se acentuando e marcando o ocaso. Parecendo cores cansadas, vão enfraquecendo e sumindo na escuridão da noite onde se escondem para se recuperarem em um sono invisível, reaparecendo renovadas na manhã seguinte. Apreciar um por de sol de qualquer lugar, é um privilégio da vida, mesmo naqueles locais menos naturais como os grandes centros urbanos. Achar um ângulo certo para apreciar o fenômeno faz com que sintamos a energia emanada do sol que se despede, prometendo voltar na manhã seguinte, como quando nos despedimos de alguém que, sabemos, voltará.

As cores vermelhas e alaranjadas do final do dia resultam de um fenômeno do ângulo de incidência da luz do sol sobre as partículas que existem na atmosfera, sendo mais intensas e belas as cores, quanto mais partículas existirem em suspensão no ar. Esta partícula provém de erupções vulcânica, de descargas de automóveis, de chaminés de indústrias e da queima de vários tipos de combustíveis e assim, como um paradoxo brilhante, quanto mais poluição atmosférica, mais bonito e colorido fica o final de tarde. Parece que o sol quer nos mostrar, através de uma obra de arte luminosa, o quanto estamos afetando nossa atmosfera com resíduos sólidos. Mas as pessoas que deveriam ver e interpretar esta obra/advertência parece que são daltônicas, não percebendo a mensagem cifrada em cores espetaculares. A cada dia o sol se esforça para nos mostrar os nossos erros.


Praia de Itapirubá, SC
Quando a tarde avança para seu final e estamos atentos ao momento, percebemos que há uma sutil mudança de comportamento das pessoas, da fauna e da flora. É a falta crescente de luz e as luzes coloridas de laranja do céu que avisam a todos de que a noite com seu breu e seus mistérios, está a caminho. Animais diurnos se dirigem aos seus abrigos orientados ainda pelas fracas luzes e a fauna noturna é magicamente ativada pela escuridão que se aproxima. Aquele pequeno intervalo de tempo entre a pouca claridade do final do dia e a escuridão total da noite nos mostra que a falta de luz não significa o final das atividades na natureza, e que mesmo na escuridão, as coisas continuam com outros olhos e olhares. 


São Miguel das Missões, RS.
Enquanto isso, vamos fazendo o possível por aqui, na escala minúscula de ação local, desenvolvendo atividades de ensino da Educação Ambiental através do Projeto Loboguará para que possamos ter líderes futuros que possam ver no por de sol algo mais do que a beleza das cores que o sol está nos enviado. 

terça-feira, 8 de abril de 2014

A identidade sonora da paisagem





Cachoeira do Poço, Ecoparque Sperry, Canela RS.
Quando no planeta Terra ainda não existia nenhuma forma de vida vagando pelas águas, terras ou ar, os únicos sons que existiam eram os próprios da natureza, como o trovão, o vento açoitando rochas, a água debatendo-se em seu caminho nas margens e cachoeiras, os vulcões vomitando as entranhas da terra e as ondas do mar quebrando nas praias. Estes eram os sons que identificavam as paisagens da terra ancestral, chamados tecnicamente por Bernie Krause de geofonias, ou os sons da terra.

Rio Silveira em São José dos Ausentes RS.
Por volta de uns seiscentos milhões de anos atrás, começaram surgir as primeiras formas de vida nas águas rasas dos oceanos e daí em diante apareceram sempre novas espécies que começaram povoar as águas, as terra emersas e o ar. Cada nova forma que surgia tinha que criar mecanismos de comunicação para se relacionar com os seus parentes e com o mundo ao seu redor, podendo esta comunicação ser química, tátil ou sonora, criando-se assim cheiros, cores e sons próprios. Assim, ao longo dos milênios, a evolução foi criando uma verdadeira orquestra de milhares de instrumentos compostos pelos sons, timbres e melodias que cada espécie desenvolveu para se manter vivo, conhecer os perigos do ambiente, encontrar alimento e reconhecer parceiro para acasalamento. Assim foi surgindo, lenta e progressivamente, um segundo grupo de sons, estes produzidos pelos seres vivos, e que são denominados genericamente de biofonias (bio = vida e fonia = som).
Os animais aprenderam o significado dos sons do ambiente onde viviam e passaram a utilizá-los para seu benefício, além de criarem, cada um a seu modo e necessidade, sua própria identidade sonora. Acredita-se que a música com toda sua complexidade de timbres, como conhecemos hoje, de alguma forma evoluiu de sons que copiamos de algum ritmo natural ou manifestações sonoras da natureza e de outros animais.


Cânon Monte Negro em São José dos Ausentes RS.
Seguidamente me posiciono no campo ou dentro da mata e fico escutando os sons locais e vejo que eles variam com a hora do dia, a estação do ano e com o clima. Cada floresta, campo, banhado, rio, montanha ou deserto tem seus sons próprios e ouvi-los é um exercício altamente relaxante. Esta mistura de sons geofônicos e biofônicos constituem sinfonias únicas, com identidade de lugar e tempo. São as chamadas identidades sonoras, ou identidades acústicas de um lugar. Assim como o som de um aglomerado urbano que mistura ruídos de veículos, pessoas, vozes, sirenes e músicas – chamados de antropofonias (antropos = relativo ao homem e fonia = som), na natureza existe o mesmo, apenas que mantendo sua proporção, fonte geradora e identidade. É possível assim reconhecer lugares apenas ouvido os sons ambientes do mesmo, um estudo relativamente novo e que implica equipamentos especializados de gravação e muito conhecimento de música para a interpretação. Mas é um mundo novo que se abre ao deleite do ouvinte atento e ao conhecimento do nosso planeta e dos seus habitantes, sempre se relacionando entre si e com o ambiente. Para os mais apaixonados pelo assunto, sugiro o livro A grande orquestra da natureza, de Bernie Krause. 

sexta-feira, 4 de abril de 2014

As dunas, a vegetação e a resilência






As dunas do nosso litoral, também conhecidas por cômoros, são aquelas pequenas elevações formadas de areias brancas que se acomodam entre o mar e as primeiras ruas e casas das praias do nosso retilíneo e tedioso litoral. Esta areia vem da praia, de dentro do mar e é empurrada para fora pela água. Na sequencia, o vento seca e empurra os grãos para o continente e vai acumulando em montículos que vão crescendo e se transformando em dunas. Quando o vento muda de direção, assopra a areia de volta para o mar e assim as dunas crescem e decrescem de tamanho, mudam sua forma e posição constituindo-se em verdadeiras montanhas moveis. Um dia aqui, outro invadindo ruas e casas (na verdade estes últimos é que invadiram o espaço delas), sempre ao sabor do vento.

Sobre estas dunas costeiras moveis existe uma vegetação que tem grande capacidade de sobreviver a estas mudanças constantes na forma e posição das areias. Um dia podem ser vistas espalhadas por cima da duna e pouco depois, enterradas alguns centímetros abaixo para logo mais estarem novamente no topo. Elas sofrem a pressão da areia, ficam no escuro, se deformam e assim que ficam livres, reconstituem sua forma e seguem a vida. Resiliência é a palavra que define esta capacidade que as plantas tem de sofrerem reveses constantes, se recuperarem e continuarem vivas. As plantas são assim permitindo que as comparemos com algumas situações da vida diária.
Quantas vezes somos soterrados por problemas aparentemente insolúveis e, de repente, a areia é soprada de cima de nós e o sol brilha novamente vindo com ele as soluções e a vida segue. Assim como uma planta das dunas é dobrada, amassada e coberta pelo peso da areia durante um tempo, ressurgindo depois, nós também somos submetidos a períodos de um aparente estado de impotência e opressão quando nada parece dar certo. Devemos aprender a ter a paciência e a resiliência das plantas de dunas, por que uma hora ou outra a areia vai sair de cima e vamos reassumir nossa postura anterior mais fortes e mais preparados para o próximo embate.


A resiliência é esta grande capacidade que nos foi dada para resistirmos a ações do meio ambiente e, por extensão, também das complexas relações sociais a que somos submetidos.  O que devemos fazer é aguardar o vento assoprar a areia e nos desenterrar para vermos que as soluções existem e chegam sempre na sua hora, assim como o vento na praia. A nossa areia são os nossos problemas diários que muitas vezes nos sufocam a ponto de acharmos que não sairemos mais debaixo deles. Mas sempre tem um vento para movê-los para outro lado, ou para cima de outros. Mesmo sabendo que eles vão voltar, temos um tempo para crescer e aprender, o que vai nos tornado mais fortes. Somos como plantas de dunas, vivendo em um mundo instável que constantemente nos submete a provações de todos os tipos, e neste cenário complexo resistem mais aqueles que compreendem isso e aguardam a próxima ventania de areia mais preparados.  

segunda-feira, 31 de março de 2014

Taipas de pedras



Uma taipa de pedras nada mais é do que uma cerca feita apenas com pedras empilhadas. Há cem, duzentos ou trezentos anos atrás, as taipas eram as cercas comuns nas fazendas e foram erguidas por negros escravos. Elas riscavam o chão dos campos e matas do Rio Grande do Sul parecendo longas serpentes que se estendiam pelo horizonte afora. Hoje há remanescentes destas obras em vários lugares, principalmente na região dos Campos de Cima da Serra, em municípios como São Francisco de Paula, Cambará do Sul e São José dos Ausentes no Rio Grande do Sul. Era por aí que passavam as tropas rumo a São Paulo e para facilitar a vida dos tropeiros, foram feitos verdadeiros corredores e currais de taipas. Muitos fragmentos destas obras podem ser vistos em São José dos Ausentes quando se vai ao Monte Negro, ponto mais alto do Rio Grande do Sul.


Curral de pedras em São José dos Ausentes avaliado em mais de 200 anos
Se observarmos bem uma taipa, podemos ver alguns detalhes curiosos. Ela tem a base mais larga do que o topo, tendo a forma de uma pirâmide, quando vista de topo. Esta forma anula ou reduz muito a ação da gravidade, evitando que a estrutura desmorone. Pedras maiores embaixo e o tamanho vai diminuindo em direção ao topo criando-se uma malha de pedras equilibradas e entrelaçadas como se elas se abraçassem para não cair. Encaixadas umas nas outras de maneira precisa, formam um quadro abstrato que pode ser visto ao longo de todo seu comprimento, já que não há uma pedra igual à outra. A cada metro quadrado de taipa, um padrão de formas, ranhuras, reentrâncias e saliências. Musgos, liquens e alguma gramínea fazem a composição de cores para compor o quadro. Na diversidade de formas e encaixes das pedras cria-se uma unidade que se torna sólida, longeva e imponente na paisagem.

O arame e o mourão de madeira ou pedra substituíram as taipas na medida em que estes materiais se tornaram mais disponíveis e baratos. O arame liso chegou ao Rio Grande do Sul a partir de 1870 e o arame farpado só aportou por aqui lá pelo ano de 1913, importado dos EUA, de onde surgiu em escala industrial em 1873. Hoje as taipas são ainda construídas, mais como elemento decorativo do que funcional. 

Antiga taipa divisor ade campos em Bom Jardim da Serra, SC

Em algumas fazendas serranas ainda é possível ver estes monumentos de pedra cumprindo ainda sua função de manter de um lado os bichos de criação e de outro os homens. A taipa também se tornou um um elemento que impedia a livre passagem de bichos nativos como o graxaim, lagarto-teiu, cutias, zorrilhos e tantos outros menores que passaram a ficar isolados. Separados uns dos outros por este muro, bichos e homens mantinham a ordem nas estâncias. Uns encerrados para engorda e abate e outros encerrados na lida campeira, que também não era nada fácil. Parece que as taipas separavam apenas quem ia morrer mais cedo, no caso gado, porcos e galinhas, dos homens que viviam um pouco mais, como que para honrar a construção das taipas que, estas sim, viam a todos nascerem e morrerem por incontáveis gerações. Quanta história poderia ser extraída da memória destas linhas de pedra que cortavam os campos e tudo viam sem poder interferir no rumo das coisas, a não ser demarcar os ambientes de cada um. Separar homens e animais como se fosse uma vingança surda, lenta e permanente das pedras que foram desenterradas e empilhadas expostas ao sol, chuva, geada e ventos sofrendo assim a lenta e derradeira morte pela erosão, transformando-se em areia e solo. A sina das taipas...