Um dia do verão de 1977 ou 78, não lembro bem, um grupo de seis colegas parceiros de aventuras da minha turma da Biologia da PUC, seguiu de ônibus de Porto Alegre para Cambará do Sul. Pouco antes de Cambará, saltamos e caminhamos uns 15 quilômetros até o parque por um acesso que
hoje está fechado. Acampamos uns dois dias por lá caminhando por cima e conhecendo detalhes da geografia que hoje é vedado aos visitantes, como um pinheiro multissecular que tem junto a uma floresta primitiva de xaxins,
porque naquela época, era
possível caminhar pelo parque todo. Numa madrugada bem cedo, ainda meio escuro, começamos a descida
pelo vértice, ali onde hoje tem um mirante que se vê o início da fenda. Decida
difícil por ser muito íngreme o local provocando escorregões e tombos de pequena importância, mas fomos seguindo com calma e cuidado.
Chegamos ao fundo do vale e nos deparamos com o poço da cascata das Andorinhas.
É ali o grande obstáculo inicial. Como atravessar aquele
poço com água batendo violentamente pela direita e um paredão de rocha negra e lisa a
esquerda. Só nadando uns 20, talvez 30
metros até o outro lado. Sem um plano B, amaramos bem as mochilas às costas, não
sem antes isolar o máximo de roupas e alimento em sacos plásticos, e cada um
foi nadando do seu jeito até a outra margem, tentando manter a mochila ao
máximo fora da água. Com tudo molhado, menos o que estava bem embalado seguimos
pelo leito do rio do Boi e acredito que foi ali que comecei desenvolver a habilidade de
saltar pedras e evitar quedas em trechos de rios e arroios. O resto do dia foi
este o exercício, cruzando inúmeras vezes de uma margem a outra e seguindo
devagar e firme pelo lugar mais fácil, ou menos difícil. Num trecho o rio do boi simplesmente some, correndo por galerias subterrâneas formadas pelas toneladas de rochas de todos os tamanhos que, com o tempo, vão se desprendendo dos paredões laterias com os movimentos provocados por trovoadas e pela ação erosiva da água. Apesar do dia esta ensolarado, a penumbra era permanente no fundo do vale.
Perto do meio dia a surpresa: o sol começou entrar e
iluminar o cânion por dentro, alegrando e aquecendo a todos. Primeiro a luz
veio pintando a parede leste e, devagar como um passeio de tartaruga mas firme
e constante como as águas de um rio de planície, veio descendo até o fundo,
clareando pedras e água, musgos e líquens, insetos, plantas e pessoas. Na mesma
velocidade preguiçosa, foi subindo o lado oposto até desaparecer, me deixando
com uma ponta de inveja pela capacidade que a luz tem de ignorar obstáculos. Paramos para reverenciar o fenômeno porque
sabíamos que duraria pouco, e assim antes da uma hora da tarde estávamos
novamente na sombra do vale.
Terminamos o dia bem na altura do cotovelo, aquela primeira
grande curva que o Itaimbezinho faz em direção ao leste e que se observa em
cima, no Mirante do Cotovelo, no final da trilha homônima. A nossa direita descia a água da Cachoeira Véu de Noiva, vista de cima no mirante do Cotovelo. Contrariamente ao caso da cachoeira das Andorinhas, aqui não se forma um poço devido ao vale ser mais largo e o volume de água ser menos. Assim foi tranquilo a passagem pela base desta imponente queda de mais de 700 metros. Lá escolhemos as
pedras mais altas e nos instalamos para comer e dormir, já que a prudência
dizia que qualquer chuva forte nas cabeceiras do rio Perdizes poderia inundar o
vale rapidamente. A noite passou tranquila, sem incidentes e apenas com o murmúrio
do rio se debatendo contra as pedras do seu leito. Fiquei olhando aquela faixa
estreita de estrelas que se abria acima de nós e senti a opressão e o encanto
do elemento natural pouco convencional.
Na manhã seguinte continuamos caminhando pelo leito do rio e notamos uma progressiva
abertura da parte superior do cânion, indicando seu alargamento natural. Sem
vestígio algum de pessoas e raros animais, seguimos o dia todo em uma caminhada
mais tranquila, com pedras menores e o rio um pouco mais largo, o que foi
facilitando o deslocamento do grupo. Muitos lugares para se tomar bons banho e inúmeras cachoeiras menores enfeitam todo o trajeto, ficando impossível saber seus nomes, com exceção das duas citadas no primeiro dia que são as maiores. Num determinado ponto encontramos as
maiores gúneras, também conhecidas com urtigão, que já vi até hoje. Cada uma de suas folhas gigantes tinha mais de dois metros
de largura, podendo envolver completamente um de nós. São plantas raras e que
só se desenvolvem nestas gretas dos aparados da serra e em alguns locais do
Andes.
Final do segundo dia e todos feliz, sujos, molhados, saudáveis e famintos, chegamos a civilização, e nos vimos em pleno centro da cidade de Praia
Grande, em Santa Catarina onde passamos a noite, que já chegava pesada e negra. Pela
manhã seguimos de ônibus até Torres e de lá para Porto Alegre. Nos últimos
lugares de trás do ônibus estava um grupo de jovens esfarrapados, sujos, com
mochilas e roupas ainda molhadas mas com uma felicidade absurda na alma, algo que
nunca mais se apagou de nenhum de nós.
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