quinta-feira, 30 de maio de 2013

A estrada de madeira



A estrada de ferro que ligou Porto Alegre a Canela, inaugurada em 14 de agosto de 1924, trouxe um grande desenvolvimento para o município e a região. O nome “Estrada de ferro” é uma alusão aos trilhos de ferro que correm paralelos, como duas longas espinhas dorsais, assentados sobre dormentes de madeira, ou outro material. Estes apoios (dormentes) absorvem o peso do trem e permitem o deslocamento em segurança da composição de um ponto a outro. Ferro e madeira sempre andaram juntos nesta aventura de tornar o transporte mais eficiente, rápido e confiável. Durante décadas o trem veio e voltou, trouxe mercadorias e pessoas e levou madeiras e pessoas, fez história e trouxe o turismo para a região, levou e trouxe fortunas e ilusões. Uma grande conquista, enfim. O problema é que mataram o trem e toda a estrutura envolvida na sua logística em 11 de março de 1963, por coincidência, no mesmo ano em que John Kennedy foi assassinado e os Beatles surgiram para o mundo.


Centenas de dormentes de antigas linhas férreas hoje servem para diversos tipos de propósito decorativos e na indústria moveleira rústica.


O que pouca gente se dá conta é que a estrada de ferro era, na realidade, assentada sobre uma ESTRADA DE MADEIRA. Explico através de alguns dados: um dormente de madeira padrão - peça sobre a qual se assentam os trilhos, tem 2,00m de comprimento por 0,24m de largura por 0,16m de altura. Para completar 1km de estrada de ferro eram utilizados 1.600 dormentes. Este número de dormentes mede 3.200m se colocados em linha, um em frente do outro. Como em 1km de estrada tem dois trilhos, temos 2.000 metros de ferro e 3.200m de madeira. Para cada km de estrada de ferro, temos 1.200 metros de madeira a mais... Simplificando, se considerarmos a distância atual de Canela a Porto Alegre – 135km, foram necessários no mínimo 216.000 dormentes que, se enfileirados, fariam uma linha de Porto alegre a Florianópolis. Aí está uma das razões para a brusca diminuição das nossas florestas nos 30 primeiros anos do século passado. Não bastasse a madeira para assentar os trilhos, tinha que ter madeira ou carvão de madeira para abastecer o trem. Não foi em vão que o patrono da Agricultura do Rio Grande do Sul – Assis Brasil, preocupado com a demanda de dormentes no primeiro quarto do século 20, importou o eucalipto da Austrália, árvore de crescimento rápido e que produzia madeira dura, ideal para a produção destas peças.


                                           Foto: André Susin
Estrada de ferro sobre um estrada de madeira

O trem veio principalmente para escoar a produção de madeira serrada de araucária, que saía das inúmeras serrarias do nosso município e da região serrana.  Por este prisma, posso afirmar que o trem foi o maior responsável pelo desmatamento de nossa região, seja para fazer a “estrada de madeira”, seja para a queima para alimentar suas caldeiras, ou para levar embora a madeira nobre da araucária. Quantas árvores de madeira nobre “desceram” ao chão para o trem poder subir a serra! Tudo tem um preço. O custo ambiental do trem foi alto porque criou um impacto muito forte e reduziu as nossas florestas e, para piorar ainda mais, tudo foi abandonado menos de 50 anos depois, mais ou menos o tempo que uma araucária leva para chegar a sua maturidade. Mais forte que o ferro do trem é a madeira das florestas, porque o primeiro está reduzido a uma máquina e dois vagões em visível estado de decomposição na antiga estação no centro de Canela. Já as florestas resistem bem ou mal, aqui ou ali onde lhes é permitido ficar, como que a mostrar que a sua força e maior do que as efêmeras construções humanas. De uma forma ou de outra, a natureza sempre prevalece.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Dia de chuva


Dia de chuva no Sítio Pangaré, no Vale do Quilombo em Canela RS

Amanheceu batendo água. O dia custou um pouco mais para clarear e o chimarrão saiu um pouco mais tarde. A cama parecia ter cola e as cobertas queriam me amarrar a ela. Saí para a área da frente da casa e vi o chão todo molhado, apesar do beiral que faz a extensão do telhado. Foi uma chuva ”tocada a vento” com se fala.
Com o chimarrão na mão, da minha área fiquei observando a fauna. Parece que apenas a espécie humana não curte se molhar nestes dias. Absolutamente indiferentes à chuva que caía, um bando de rolinha-roxa disputava alimentos no gramado, junto com canários-da-terra. Os tico-ticos e suiriris ficavam aguardando os cupins de asa saírem do chão, para caçá-los no ar. Chuva? Que chuva, a fome é maior e as aves são indiferentes ao fenômeno. Eu, na área evitando me molhar. Fui para o outro lado da casa, que dá para o pomar. Lá o sanhaçu-cinzento, a saíra-preciosa, o tucano-do-bico-verde e alguns sabiás-laranjeira escolhiam os caquis maduros. Chuva? Que chuva, alimentar-se é mais importante. 

Chuva intensa no Ecoparque Sperry em fevereiro de 2013

As aves impermeabilizam suas penas com um óleo que produzem  numa glândula na base da cauda (uropigial), conhecida popularmente como “sobre”, e assim ficam como se  estivessem com uma capa de chuva.
Olhando para o morro do laje de Pedra, vi que subia uma coluna de cerração em direção a zona urbana de Canela. Daqui do Vale do Quilombo é possível ver a formação deste fenômeno natural que tanto aborrece os moradores de Canela e Gramado.  Neste local, 400 metros abaixo do centro de Canela, a cerração fica acima de mim, deixando os transtornos de visibilidade quase zero lá para o centro da cidade.
A chuva mansa continuou pelo dia todo e parecia que a terra agradecia absorvendo o líquido de forma lenta e silenciosa e devolvendo a gentileza através das plantas que crescem com vigor e trazem sustento para a fauna. O excesso de água rola pelos declives e vai se juntar a algum arroio próximo, como um complexo sistema de veias de um grande organismo que acaba levando o líquido para o oceano. O mar é o verdadeiro coração do planeta que recebe a água dos rios e a devolve sob a forma de chuva aos continetes.
O peso das gotas vai encharcando folhas e troncos fazendo com que os galhos se projetem para baixo, como que se quisessem tocar o solo ou se curvando em agradecimento pelo precioso líquido que estão recebendo. Um pouco de vento e o peso dos galhos é aliviado pela expulsão do excesso de água, fazendo parecer que está chovendo mais forte.

Cachoeira da Usina cheia após uma chuva forte (Ecoparque Sperry)

O brilho das folhas em dia de chuva é mais pálido e discreto do que quando o sol está brilhando, talvez como uma deferência ao astro rei que traz a energia necessária para a base da vida na terra – a luz, que junto com a água e o carbono, permitem a produção de alimentos e energia (fotossíntese), vital a toda a vida no planeta. Sol e chuva vão dando as regras para a vida e, visto assim, a chuva é tão boa e necessária quanto o sol. Portanto, dia de chuva é bom, basta mudarmos nosso ponto de vista. Devíamos tomar mais banhos de chuva porque faz muito bem e nos aproxima mais da natureza. 

Um sanhaçu-cinzento comendo banana durante chuva forte.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Outono, período de mudanças.



Caquizeiro


Chegou o outono, estação de muitas mudanças na natureza e nas pessoas. Vivemos no paralelo 29 graus de latitude sul, bem abaixo do equador (hemisfério austral) onde, durante todo o ano, os dias e as noites tem exatamente a mesma duração. Aqui sentimos a duração dos dias e noites mudarem conforme mudam as estações. O outono é uma estação sempre aguardada devido à progressiva diminuição das temperaturas, a chegada da época de pinhão e a mudança de cores da paisagem.

Ginkgo biloba

As folhas de muitas árvores, como o plátano, caquizeiro, liquidambar, Acer e ginkgo iniciam um lento e irreversível processo de morte que transforma a paisagem num grande palco natural onde mutações cromáticas se exibem como num desfile estático, para o deleite das pessoas. Este processo natural é uma adaptação destas plantas a um frio que se aproxima e a uma estação com menos horas de luz solar. Aos primeiros sinais da nova estação, como o encurtamento do dia, muitas árvores param de produzir clorofila (pigmento verde) nas folhas. Isto determina a interrupção da produção de nutrientes (fotossíntese) e elas começam morrer. Daí inicia o desfile de cores que se inicia com o amarelo e segue para o laranja, vermelho e, finalmente, marrom. 




Caquizeiro

Simultaneamente a este processo, a planta produz e acumula um ácido (abscísico) na base do pecíolo (haste que prende a folha ao galho) que mata as células do local e as folhas acabam caindo, num compasso ditado pelo vento e pela gravidade, e vão forrando o chão do local como um tapete multicolorido.
Olho agora para um caquizeiro pela minha janela e já vejo este processo em curso. O chão começa ficar coberto de folhas alaranjadas e marrons e os frutos tornam-se mais visíveis devido à diminuição das folhas. Mesmo que todas estas espécies sejam exóticas (provenientes de outras regiões geográficas), a beleza do fenômeno encanta as pessoas e sinaliza as mudanças em curso.


Acer sp

Figurativamente, o outono da vida de uma pessoa é aquele período em que ela entra na velhice e aguarda pelo seu inverno – o seu ocaso natural, esperando que não seja muito rigoroso. No nosso calendário o outono dura apenas três meses, mas no calendário figurado da nossa vida ele pode durar muitos anos e ser bem interessante. Aos 61 anos já estou no meu outono, mas o meu inverno, espero, está ainda muito longe e me sinto ainda no verão, com energia e disposição para seguir trabalhando, escrevendo e interpretando a natureza, este elemento que me intriga, inebria, complementa e me alimenta a alma. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O ouriço-cacheiro





Vou me solidarizar com um animal que é mais conhecido pelo que causa aos nossos cães do que ele propriamente dito. Trata-se do ouriço-cacheiro, também conhecido como porco-espinho (Coendou villosus). Sempre lemos notícias ou ouvimos comentários de que um ouriço atacou um cão e o encheu de espinhos.

Primeiro que o ouriço não ataca, uma vez que é um roedor lento, não agressivo e que vive em cima das árvores (arborícola). O que acontece é que na cidade as matas são poucas,  resumindo-se a algum quintal ou praça arborizada. Como o ouriço alimenta-se de folhas e frutos, ele tem que estar constantemente em busca de seu alimento andando de árvore em árvore. Nas matas de grande porte, ele raramente desce ao solo deslocando-se sempre de galho em galho, como os bugios e macacos-prego. Com as árvores longes umas das outras, na cidade, ele obriga-se a descer ao solo para passar de uma para outra. Pois é neste momento que os nossos cães entram na história. Como o que não falta na cidade é cachorro, logo algum vai farejar o pobre e lento roedor e instintivamente tenta mordê-lo. Rápida e dolorosamente, aprende que este é um bicho a ser deixado em paz. 

Deste ponto em diante, só se fala no cão que algumas vezes morre devido ao grande número de espinhos que entram na sua pele e até na boca.  Poucos são os que se preocupam com o pobre do ouriço, um roedor nativo das Américas Central  e do Sul e que apenas tenta sobreviver nas zonas urbanas mais arborizadas. 

Raros são os que se salvam, e a perda não é lamentada. Devíamos pensar um pouco na eliminação progressiva e quase inevitável que os nossos cães e gatos domésticos promovem sobre a fauna nativa. Gatos e cães são animais não nativos da América (são exóticos) e se, fora de controle, podem trazer sérios prejuízos à fauna local. Manter nossos animais domésticos bem tratados e cercados, impedidos de predarem pequenas aves (gatos) ou ouriços, é uma obrigação mínima dos donos.

Um brinde ao ouriço-cacheiro, valente sobrevivente das nossas já escassas florestas. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Sapo-cururú




Em dias quentes em que o tempo está se armando para uma chuva, ele aparece do nada nos pátios, jardins e áreas rurais com matas e mesmo nos campos, É o sapo-cururú, um velho conhecido de todos. Pacato, deslocando-se aos saltos, é alvo preferido dos cães curiosos que tentam abocanhá-los. Em seguida aprendem que este bicho deve ser deixado em paz. A toxina que exalam vem de suas glândulas parotóides localizadas nos lados e atrás da cabeça sob a forma de duas verrugas alongadas. Quando molestado, o sapo-cururú elimina uma substância leitosa tóxica que pode provocar diversas reações nos animais predadores e mesmo nas pessoas, principalmente nas mucosas.

 Macho de sapo-cururu


Este sapo tem por hábito alimentar-se de insetos, lesmas e até mesmo pequenos vertebrados que sejam encontrados no seu ambiente, como roedores. Num único dia um sapo adulto pode ingerir mais de uma centena  de insetos, o que demonstra a importância deste animal no controle biológico de pragas potencias. São tão eficientes neste processo que foram introduzidos em algumas ilhas do Caribe e na Austrália para combater pragas dos canaviais. Até hoje na Austrália o sapo-cururú é um dos predadores mais vorazes de pequenos animais e se tornou uma praga nacional, já que lá ele não tem predadores naturais e assim multiplicaram-se de forma descontrolada.

Fêmea de sapo-cururu

O macho desta espécie é um pouco menor que a fêmea e tem uma coloração uniforme, esverdeada. A Fêmea tem pintas pretas e é maior. A reprodução do sapo-cururú depende da presença de água. Quando chove na primavera e verão, formando lagoas temporárias, ou em açudes e beiras de rios, eles se encontram e acasalam na água, colocando os ovos em longos filamentos gelatinosos. Destes ovos surgem os girinos pretos parecendo com peixes desajeitados que nadam e se alimentam de matéria orgânica do fundo. Depois de completar o ciclo na água, os pequenos sapos abandonam a lagoa e passam a viver na terra, abrigando-se em tocas, embaixo de pedras, troncos ou qualquer local que os proteja quando não estão ativos. A presença de sapos pode ser um bom indicativo de um ambiente natural em equilíbrio. E segue a vida. 


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A erva-mate




Tomar um chimarrão bem cevado pela manhã ou no final da tarde é um hábito que quase todos os gaúchos cultivam, fato que agrega as pessoas e cria laços atávicos com a terra natal e sua cultura. A erva-mate era conhecida e utilizada largamente pelos índios Guaranis quando da chegada dos europeus aqui na América. Foi fácil e rápido incorporar o hábito de tomar chimarrão aprendido com os nativos e assim lentamente se estabeleceu uma das primeiras agroindústrias em torno do mate, iniciada pelos Jesuítas na região missioneira. Foram justamente os padres das missões que por primeiro desenvolveram técnicas para o cultivo comercial da erva-mate e descobriram, entre outras coisas, que nos primeiros anos de cultivo a erva-mate tem que permanecer a sombra. Outro truque que desvendaram foi o da quebra da dormência das sementes, que faziam dando os frutos para as galinhas e depois coletavam as sementes nos excrementos. O estômago das galinhas (a moela) agia como uma lixa sobre as duras cascas das sementes, deixando-as prontas para a germinação.


Folhas de erva-mate verdes não exalam o aroma das mesmas quando desidratadas.

A erva-mate é a árvore símbolo do Rio Grande do Sul e o chimarrão, a bebida. Esta planta é nativa da América do Sul e foi batizada cientificamente de Ilex paraguariensis por um naturalista francês chamado Auguste de Saint-Hilaire, em 1820, durante uma viagem que empreendeu nesta época ao sul do Brasil, onde teve contato com a planta ainda desconhecida pela ciência. Ele passou pelo Rio Grande do Sul por volta de 1823 e seu livro com todo o roteiro que fez por aqui é um clássico da literatura de viagens científicas.
A maioria das pessoas que tem o hábito de “matear” não conhece a árvore da erva-mate e isso eu pude constatar quando trabalhei por muitos anos no Parque do Caracol. Lá tem vários exemplares desta árvore e eu ficava observando o espanto das pessoas quando liam a placa que as identificavam. A primeira reação das pessoas era de arrancar uma folha, esmagá-la entre os dedos e cheirar. Como a folha verde não exala o cheiro de mate da folha desidratada, algumas duvidavam da veracidade da informação contida na placa.


Frutos maduros de erva-mate. Seu gosto é semelhante a fruta do café

Outra coisa interessante é que a erva-mate tem sexos separados. Isso mesmo. Tem árvores com flores masculinas e árvores com flores femininas e só estas últimas produzem frutos (detalhe da foto). Este fruto tem um gosto semelhante ao da fruta do café, e é muito procurado pela fauna, como o sabiá-laranjeira, sanhaçu-cinzento, pombas e outras aves que se alimentam de frutos. Ao ingerirem acabam dispersando as sementes através dos excrementos e isto faz com que a erva-mate se disperse por novas áreas. Sabiá não toma mate, mas planta a árvore. Este é realmente um grande legado cultural que devemos aos índios Guaranis e a natureza. Muitos mates a todos neste 2013.



Meus avios do mate. Inseparáveis.