quinta-feira, 29 de maio de 2014

Por dentro do Itaimbezinho



Um dia do verão de 1977 ou 78, não lembro bem, um grupo de seis colegas parceiros de aventuras da minha turma da Biologia da PUC, seguiu de ônibus de Porto Alegre para Cambará do Sul. Pouco antes de Cambará, saltamos e caminhamos uns 15 quilômetros até o parque por um acesso que hoje está fechado. Acampamos uns dois dias por lá caminhando por cima e conhecendo detalhes da geografia que hoje é vedado aos visitantes, como um pinheiro multissecular que tem junto a uma floresta primitiva de xaxins,
porque naquela época, era possível caminhar pelo parque todo. Numa madrugada bem cedo, ainda meio escuro, começamos a descida pelo vértice, ali onde hoje tem um mirante que se vê o início da fenda. Decida difícil por ser muito íngreme o local provocando escorregões e tombos de pequena importância, mas fomos seguindo com calma e cuidado. Chegamos ao fundo do vale e nos deparamos com o poço da cascata das Andorinhas.
É ali o grande obstáculo inicial. Como atravessar aquele poço com água batendo violentamente pela direita e um paredão de rocha negra e lisa a esquerda.  Só nadando uns 20, talvez 30 metros até o outro lado. Sem um plano B, amaramos bem as mochilas às costas, não sem antes isolar o máximo de roupas e alimento em sacos plásticos, e cada um foi nadando do seu jeito até a outra margem, tentando manter a mochila ao máximo fora da água. Com tudo molhado, menos o que estava bem embalado seguimos pelo leito do rio do Boi e acredito que foi ali que comecei desenvolver a habilidade de saltar pedras e evitar quedas em trechos de rios e arroios. O resto do dia foi este o exercício, cruzando inúmeras vezes de uma margem a outra e seguindo devagar e firme pelo lugar mais fácil, ou menos difícil. Num trecho o rio do boi simplesmente some, correndo por galerias subterrâneas formadas pelas toneladas de rochas de todos os tamanhos que, com o tempo, vão se desprendendo dos paredões laterias com os movimentos provocados por trovoadas e pela ação erosiva da água. Apesar do dia esta ensolarado, a penumbra era permanente no fundo do vale. 

Perto do meio dia a surpresa: o sol começou entrar e iluminar o cânion por dentro, alegrando e aquecendo a todos. Primeiro a luz veio pintando a parede leste e, devagar como um passeio de tartaruga mas firme e constante como as águas de um rio de planície, veio descendo até o fundo, clareando pedras e água, musgos e líquens, insetos, plantas e pessoas. Na mesma velocidade preguiçosa, foi subindo o lado oposto até desaparecer, me deixando com uma ponta de inveja pela capacidade que a luz tem de ignorar obstáculos.  Paramos para reverenciar o fenômeno porque sabíamos que duraria pouco, e assim antes da uma hora da tarde estávamos novamente na sombra do vale.

Terminamos o dia bem na altura do cotovelo, aquela primeira grande curva que o Itaimbezinho faz em direção ao leste e que se observa em cima, no Mirante do Cotovelo, no final da trilha homônima. A nossa direita descia a água da Cachoeira Véu de Noiva, vista de cima no mirante do Cotovelo. Contrariamente ao caso da cachoeira das Andorinhas, aqui não se forma um poço devido ao vale ser mais largo e o  volume de água ser menos. Assim foi tranquilo a passagem pela base desta imponente queda de mais de 700 metros. Lá escolhemos as pedras mais altas e nos instalamos para comer e dormir, já que a prudência dizia que qualquer chuva forte nas cabeceiras do rio Perdizes poderia inundar o vale rapidamente. A noite passou tranquila, sem incidentes e apenas com o murmúrio do rio se debatendo contra as pedras do seu leito. Fiquei olhando aquela faixa estreita de estrelas que se abria acima de nós e senti a opressão e o encanto do elemento natural pouco convencional.

Na manhã seguinte continuamos caminhando pelo leito do rio e notamos uma progressiva abertura da parte superior do cânion, indicando seu alargamento natural. Sem vestígio algum de pessoas e raros animais, seguimos o dia todo em uma caminhada mais tranquila, com pedras menores e o rio um pouco mais largo, o que foi facilitando o deslocamento do grupo. Muitos lugares para se tomar bons banho e inúmeras cachoeiras menores enfeitam todo o trajeto, ficando impossível saber seus nomes, com exceção das duas citadas no primeiro dia que são as maiores.  Num determinado ponto encontramos as maiores gúneras, também conhecidas com urtigão, que já vi até hoje. Cada uma de suas folhas gigantes tinha mais de dois metros de largura, podendo envolver completamente um de nós. São plantas raras e que só se desenvolvem nestas gretas dos aparados da serra e em alguns locais do Andes.


Final do segundo dia e todos feliz, sujos, molhados, saudáveis e famintos, chegamos a civilização, e nos vimos em pleno centro da cidade de Praia Grande, em Santa Catarina onde passamos a noite, que já chegava pesada e negra. Pela manhã seguimos de ônibus até Torres e de lá para Porto Alegre. Nos últimos lugares de trás do ônibus estava um grupo de jovens esfarrapados, sujos, com mochilas e roupas ainda molhadas mas com uma felicidade absurda na alma, algo que nunca mais se apagou de nenhum de nós.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Caminhando pelos Campos de Altitude do Rio Grande do Sul




Numa manhã deste março quente e seco, sai para uma caminhada aleatória pelo campo, sem muito compromisso além daquele habitual de olhar, ouvir, fotografar e interpretar a paisagem. O capim caninha está no final de seu ciclo anual e as hastes que escaparam das bocas do gado, agora estão içadas o mais alto possível com suas sementes prontas para serem lançadas ao vento. Como lanças apontando para cima, tornam-se progressivamente douradas a medida que amadurecem e o que vejo agora neste final de março é um mosaico de campos dourados e verdes. Verdes onde o pastoreio foi mais intenso e assim as folhas da grama predominam. Dourados onde, por algum motivo, o pastoreio foi menos intenso e a produção das hastes reprodutoras é maior. Assim em alguns lugares haverá menos sementes do que em outros, mas como é o vento o elemento que fará o transporte destas minúsculas partículas, a geração seguinte está garantida.

Vale do Rio Silveira, São José dos Ausentes, RS
Caminhar pelo campo nesta época é como apreciar o tempo, sabendo-se que um ciclo está encerrando e vendo um novo que se inicia, com outras cores e aspectos. O gado, gordo e bem formado, mostra que a estação de pastagem foi boa e há reservas acumuladas para enfrentar o inverno que se aproxima. Passo ao lado de uma meia dúzia de bois tranquilos, alguns de pé outros deitados na borda de uma matinha de araucárias exercitando o ritual babão da ruminação do capim ingerido anteriormente. Olhando com atenção é possível ver o bolo de capim regurgitado, revelado pelo volume na parte de baixo do pescoço, subindo como uma bola apressada até a boca, onde vai ser mastigado e salivado com a calma bovina que lhes é peculiar.
Sigo por uma trilha de gado que serpenteia o campo e já ouço a frente o som da água correndo e se debatendo contra as rochas do leito do Rio Silveira, aqui em São Jose dos Ausentes. Surpreso, vejo surgir por trás de uma elevação do terreno um casal de seriemas andando com a calma própria de quem vive em um lugar silencioso e tranquilo, concentrados na busca de pequenos animais do solo e brotos de ervas campeiras. Parecem bem camuflados pelo capim alto e de coloração semelhante à das suas penas e patas longas. Sigo olhando e cheirando e me assusto com um bando de pica-paus-do-campo, ariscos e barulhentos, que alça voo com estridentes protestos pela minha presença, pousando mais adiante em rochas salientes no campo e em velhos mourões de cerca, cabeludos de líquens e cansados de segurar os arames, mais vergados do que eretos.

 Rio Silveira, São José dos Ausentes, RS
Sigo adiante me deleitando com os cheiros e a paisagem e vejo um falcão quiri-quiri, pequeno em porte mas eficiente na caça como um gavião grande. Usando a cerca como poleiro, fica atento a tudo que se movimenta no campo e que pode ser um item de sua dieta. Entro na mata e, antes de ver, ouço um bando de gralha-azul, gritando e avisando a todos a minha chegada. Vejo que estão se alimentando de algum fruto ou semente, algumas próximas do solo e outras nos alhos altos dos pinheiros. Não sossegaram enquanto não desapareci da vista. No final da trilha chego a um mirante natural de pedra que me mostra uma bela cachoeira, não muito alta, que me chama para um banho. Não resisti ao apelo mudo e calmo da água e me entreguei ao exercício de deixar a água fria levar meu calor e me imprimir um prazer indescritível de bem estar. É bom deixar a água fazer o que ela mais sabe. (Esta narrativa de trilha segue em uma coluna futura)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Os caminhos do gado




O gado foi introduzido no Rio Grande do Sul por volta de 1628 pelos Jesuítas lá pela Região Missioneira, bandeados do outro lado do rio Uruguai. Animais estranhos a paisagem, trazidos inicialmente da Europa por navios a vela, aqui logo foram se adaptando e ocupando espaços na vastidão dos campos que havia em mais da metade da cobertura vegetal natural do Rio Grande do Sul. Lentamente foram se multiplicando e se espalhado por onde havia campo nativo, e aqui pelo Campos de Cima da Serra, no nordeste gaúcho, chegaram também com os Jesuítas quase cem anos depois, fugindo das Missões, uma vez que eram vítimas dos assaltos dos Bandeirantes paulistas que vinham prear escravos indígenas.

Logo surgiram as fazendas e estâncias de grande porte aqui na região serrana, dividas por quilômetros de taipas de pedras feitas com mãos de escravos negros e índios.  Lentamente o gado foi imprimindo uma morfologia típica em alguns lugares acidentados, formados por coxilhas altas e íngremes. Estes bovinos tem uma tendência de se deslocarem pelas curvas de nível dos terrenos acidentados, economizando a energia que gastariam para subirem ou descerem em linha reta ou em diagonal.

Na foto ao lado é possível ver o gado se deslocando pela encosta de uma coxilha alta e as marcas deixadas pelas trilhas paralelas que, vistas de longe, dão a impressão de degraus ou patamares bem nítidos ao longo da encosta. Visões semelhantes, mantidas as proporções, são as dos patamares de plantações de arroz que se veem em países orientais, como China e Tailândia. Quando a necessidade obriga, homens e animais mostram um padrão semelhante de adaptação na utilização dos terrenos adversos. Os orientais pela necessidade de terem terras planas para irrigarem o arroz e aqui os bovinos pela sabedoria de menor esforço diante de um terreno tão adverso.
Quem anda pelo campo nestes locais percebe que nestas trilhas do gado os cascos, com a paciência bovina de anos seguidos, aplainam o terreno e criam uma trilha perfeita para o deslocamento deles e de pessoas. Profundas as vezes e cobertas pelo capim em outras, são excelentes para uma caminhada pelos costados destas altas coxilhas gramadas.

Uma vez escapei de uma situação perigosa quando fui surpreendido em uma caminhada pelo campo com a chegada de uma cerração densa, lá pelas bandas do Itaimbezinho. Sentei e fiquei pensando em como me orientar, já que não enxergava a palma da minha mão a frente. Só lembrava que estava indo em direção oposta à da fazenda que estava. Apalpei o terreno e encontrei uma destas trilhas de gado, virei para a direção oposta e calculei que a trilha deveria ir até a fazenda, um caminho natural do gado. Com a ponta das botas ia identificando o terreno nu da trilha e assim fui indo lentamente por mais de uma hora até chegar num local em que o nevoeiro começou a enfraquecer e me mostrou os contornos do galpão e logo o das casas da fazenda. Fui salvo pelos cainhos do gado.



sexta-feira, 18 de abril de 2014

O banho de rio e o fogo




banho na Cachoeira do Poço, no Ecoparque Sperry, Canela RS
Durante a história evolutiva do homem os rios, lagos e oceanos estiveram sempre presentes, marcando a memória ancestral assim como o fogo, a sede e a fome. O rio e o fogo estão muito ligados a minha vida e sempre me deram prazer e relaxamento em geografias tão distantes e diferentes como a montanha e a planície. Num banho de rio a água passa pelo corpo arrancando e levando por diante dores, suores, medos, más lembranças e o calor que incomoda. Tudo segue rio abaixo sem que ele me cobre nada por isso, deixando o corpo em sossego e com um agradável alívio térmico de um bom banho de chuva. O banho de rio é uma troca, onde aquilo que me incomoda é o que a água leva, e o que me faltava, ela traz. Assim é um banho de rio, um exercício completo de relaxamento e reencontro com um elemento da natureza vital e insubstituível.

Curva do Arroio Quilombo no  Ecoparque Sperry, Canela RS
Sempre se renovando, a água de um rio nunca passa duas vezes pelo mesmo lugar e isso faz com que ela me trate sempre como se fosse o primeiro encontro, com toda a sua gentileza de levar o que me incomoda e presentear com o que tem de melhor. Talvez este seja o grande segredo e por isso é sempre muito revigorante e surpreendente. Como um cachorro que gosta muito do seu dono, as vezes o rio quer nos manter juntos para sempre, criando situações sinistras de posse que acabam em tragédia. Mas sabendo lidar com ele, podemos usufruir de sua infinita bondade e habilidade em nos proporcionar momentos agradáveis.

Fogo de acampamento
O fogo, complemento natural da água quando estamos acampados, faz o contraponto perfeito para o equilíbrio de um prazer onírico e atávico, envolto em algum mistério que nos eleva junto com a chama a uma altura invisível.
Curiosamente a água, que nos acalma com seu prazer refrescante, consegue apagar o fogo que nos aquece, parecendo que sente ciúmes das chamas que se elevam e iluminam tudo e todos em volta, coisa que não pode fazer com seu corpo líquido, amorfo e sem luz. Ou talvez o fogo queira ser maior que o rio, quando se alastra em grandes incêndios, e aí a água desce e acaba com a sua pretensão descabida, mostrando que cada um teu seu reino, função e espaço, sendo que o encontro dos dois é ruim para o fogo, já que se extingue e a água, ao sofrer o impacto com as chamas, muda para o estado de vapor, podendo assim fugir para cima e se esconder nas nuvens.    



segunda-feira, 14 de abril de 2014

O Lobo-guará



Os lobos sempre habitaram o imaginário das crianças e na forma mais perversa. Eles sempre eram os vilões das histórias, comedores de gente e que botavam medo nos personagens de histórias infantis que se passavam em áreas com florestas. De fato, havia muitos lobos nas florestas da Europa na Idade Média e estes canídeos imprimiam grande medo nas pessoas e isso acabou entrando na literatura infantil e se perpetuando como sendo um sinônimo de algo ruim, perverso e devorador.  A caça e a ocupação humana extinguiu o lobo na Europa há mais de 150 anos. Somente nos últimos 15 anos é que novas populações de lobos provenientes do leste europeu, recomeçaram colonizar as floresta do oeste. Nos Estados Unidos também tem lobos nativos e eles quase foram levados à extinção, assim como seus parentes europeus. Ainda há populações de lobos selvagens em parques nacionais, como o Yellowstone onde são bem estudados.
Na América do Sul não há lobos como os do hemisfério norte, mas aqui temos uma espécie de cão selvagem de grande porte que os índios já chamavam de Aguará. A composição de Lobo-guará foi provavelmente uma alusão que os colonizadores fizeram a este nosso canídeo em lembrança dos lobos da Europa, que eles bem conheciam.
O lobo-guará é um típico canídeo brasileiro, tendo seu centro de dispersão e maior ocorrência na região do Cerrado no Brasil Central. Sem dúvidas é o maior cão selvagem do Brasil e infelizmente encontra-se ameaçados de extinção. Animal de porte notável, com mais de um metro de altura, tímido e predador de aves e pequenos mamíferos, é raramente visto ou ouvido. Sua extinção está traçada mais devido à destruição do seu habitat do que pela caça. A expansão das lavouras de soja, milho e algodão do Centro Oeste brasileiro, destruiu o maior reduto deste carnívoro. Com poucos espaços restantes, eles começam se deslocar mais para encontrar comida e acabam caindo em outra armadilha: o atropelamento em estradas.


Há 22 anos, criamos um programa de Educação Ambiental aqui em Canela denominado Projeto Loboguará e este nome foi escolhido devido a três fatores importantes: o lobo-guará é o maior cão selvagem nativo do Brasil e da América do Sul; ele está relacionado na listas das espécies reconhecidamente ameaçadas de extinção; ainda há registros de lobo-guará na região dos Campos de Cima da Serra em São Francisco de Paula e Cambará do Sul. Com a constante divulgação dos hábitos e costumes desta espécie, acreditamos fazer uma parcela de esforços no sentido de conscientizar as pessoas mais jovens da importância de se evitar a extinção de uma espécie. Os Ingleses extinguiram uma espécie de graxaim das ilhas Malvinas para poderem crias suas ovelhas. Na Austrália eles extinguiram o Lobo da Tasmânia pelo mesmo motivo, cujo último indivíduo morreu em 1936 em um zoológico. Extinção é para sempre, e perdermos um animal como o Lobo-guará é perdermos uma parte importante do nosso patrimônio natural. E pior do que isso, o fato é irreversível. Para salvarmos nossos carnívoros nativos, como o Lobo-guará, temos que manter seu habitat para que neles encontrem abrigo, alimento e local para criar os filhotes. 

O alerta do por do sol



Vale do Quilombo, Canela - RS

O final de uma tarde ensolarada é como um lamento de cores de tons laranja, amarelo e vermelho se acentuando e marcando o ocaso. Parecendo cores cansadas, vão enfraquecendo e sumindo na escuridão da noite onde se escondem para se recuperarem em um sono invisível, reaparecendo renovadas na manhã seguinte. Apreciar um por de sol de qualquer lugar, é um privilégio da vida, mesmo naqueles locais menos naturais como os grandes centros urbanos. Achar um ângulo certo para apreciar o fenômeno faz com que sintamos a energia emanada do sol que se despede, prometendo voltar na manhã seguinte, como quando nos despedimos de alguém que, sabemos, voltará.

As cores vermelhas e alaranjadas do final do dia resultam de um fenômeno do ângulo de incidência da luz do sol sobre as partículas que existem na atmosfera, sendo mais intensas e belas as cores, quanto mais partículas existirem em suspensão no ar. Esta partícula provém de erupções vulcânica, de descargas de automóveis, de chaminés de indústrias e da queima de vários tipos de combustíveis e assim, como um paradoxo brilhante, quanto mais poluição atmosférica, mais bonito e colorido fica o final de tarde. Parece que o sol quer nos mostrar, através de uma obra de arte luminosa, o quanto estamos afetando nossa atmosfera com resíduos sólidos. Mas as pessoas que deveriam ver e interpretar esta obra/advertência parece que são daltônicas, não percebendo a mensagem cifrada em cores espetaculares. A cada dia o sol se esforça para nos mostrar os nossos erros.


Praia de Itapirubá, SC
Quando a tarde avança para seu final e estamos atentos ao momento, percebemos que há uma sutil mudança de comportamento das pessoas, da fauna e da flora. É a falta crescente de luz e as luzes coloridas de laranja do céu que avisam a todos de que a noite com seu breu e seus mistérios, está a caminho. Animais diurnos se dirigem aos seus abrigos orientados ainda pelas fracas luzes e a fauna noturna é magicamente ativada pela escuridão que se aproxima. Aquele pequeno intervalo de tempo entre a pouca claridade do final do dia e a escuridão total da noite nos mostra que a falta de luz não significa o final das atividades na natureza, e que mesmo na escuridão, as coisas continuam com outros olhos e olhares. 


São Miguel das Missões, RS.
Enquanto isso, vamos fazendo o possível por aqui, na escala minúscula de ação local, desenvolvendo atividades de ensino da Educação Ambiental através do Projeto Loboguará para que possamos ter líderes futuros que possam ver no por de sol algo mais do que a beleza das cores que o sol está nos enviado. 

terça-feira, 8 de abril de 2014

A identidade sonora da paisagem





Cachoeira do Poço, Ecoparque Sperry, Canela RS.
Quando no planeta Terra ainda não existia nenhuma forma de vida vagando pelas águas, terras ou ar, os únicos sons que existiam eram os próprios da natureza, como o trovão, o vento açoitando rochas, a água debatendo-se em seu caminho nas margens e cachoeiras, os vulcões vomitando as entranhas da terra e as ondas do mar quebrando nas praias. Estes eram os sons que identificavam as paisagens da terra ancestral, chamados tecnicamente por Bernie Krause de geofonias, ou os sons da terra.

Rio Silveira em São José dos Ausentes RS.
Por volta de uns seiscentos milhões de anos atrás, começaram surgir as primeiras formas de vida nas águas rasas dos oceanos e daí em diante apareceram sempre novas espécies que começaram povoar as águas, as terra emersas e o ar. Cada nova forma que surgia tinha que criar mecanismos de comunicação para se relacionar com os seus parentes e com o mundo ao seu redor, podendo esta comunicação ser química, tátil ou sonora, criando-se assim cheiros, cores e sons próprios. Assim, ao longo dos milênios, a evolução foi criando uma verdadeira orquestra de milhares de instrumentos compostos pelos sons, timbres e melodias que cada espécie desenvolveu para se manter vivo, conhecer os perigos do ambiente, encontrar alimento e reconhecer parceiro para acasalamento. Assim foi surgindo, lenta e progressivamente, um segundo grupo de sons, estes produzidos pelos seres vivos, e que são denominados genericamente de biofonias (bio = vida e fonia = som).
Os animais aprenderam o significado dos sons do ambiente onde viviam e passaram a utilizá-los para seu benefício, além de criarem, cada um a seu modo e necessidade, sua própria identidade sonora. Acredita-se que a música com toda sua complexidade de timbres, como conhecemos hoje, de alguma forma evoluiu de sons que copiamos de algum ritmo natural ou manifestações sonoras da natureza e de outros animais.


Cânon Monte Negro em São José dos Ausentes RS.
Seguidamente me posiciono no campo ou dentro da mata e fico escutando os sons locais e vejo que eles variam com a hora do dia, a estação do ano e com o clima. Cada floresta, campo, banhado, rio, montanha ou deserto tem seus sons próprios e ouvi-los é um exercício altamente relaxante. Esta mistura de sons geofônicos e biofônicos constituem sinfonias únicas, com identidade de lugar e tempo. São as chamadas identidades sonoras, ou identidades acústicas de um lugar. Assim como o som de um aglomerado urbano que mistura ruídos de veículos, pessoas, vozes, sirenes e músicas – chamados de antropofonias (antropos = relativo ao homem e fonia = som), na natureza existe o mesmo, apenas que mantendo sua proporção, fonte geradora e identidade. É possível assim reconhecer lugares apenas ouvido os sons ambientes do mesmo, um estudo relativamente novo e que implica equipamentos especializados de gravação e muito conhecimento de música para a interpretação. Mas é um mundo novo que se abre ao deleite do ouvinte atento e ao conhecimento do nosso planeta e dos seus habitantes, sempre se relacionando entre si e com o ambiente. Para os mais apaixonados pelo assunto, sugiro o livro A grande orquestra da natureza, de Bernie Krause.