sábado, 19 de julho de 2014

O dia vai terminando





No campo, o final de um dia ensolarado de inverno tem cheiro de terra, grama seca e dourada, sons distantes e fumaça de grimpa queimada. O sol indo iluminar outros quadrantes da terra e a sombra negra da noite se aproximando lenta e decidida, como uma maré que nunca falha. Os bichos alterando o canto, mudando de lugar, procurando abrigo para o período que se aproxima e a temperatura informando que a noite será fria. Orvalho começa a se formar e a roupa do corpo parece molhada ao toque, fria e úmida. A visão vai diminuindo e o horizonte encurtando, como se estivesse me empurrando para o abrigo da casa. Hora de alimentar o cachorro e abastecer de lenha o cesto para garantir o calor na casa durante a noite, que vem a galope e sem obstáculos. O frio no rosto já prenuncia o que vem.

Recolhido em casa, o fogo na salamandra vai espalhando o calor pela sala trazendo conforto e segurança que só o fogo pode. O cheiro de pão que emana do forno torna perceptível a magia operada na farinha pelo fermento e o calor, tornado aquela massa pálida, densa e fria, num pão dourado e aerado, leve, aromático e saboroso. Casa quente, pão pronto e exalando todo o perfume de sua alquimia, ponho na mesa o que vai me garantira a noite: pedaços de pão novo, fatias fina, muito finas de uma copa defumada, queijo serrano e uma manteiga amarelinha de dar gosto ainda maior ao pão. A taça de vinho embala tudo e leva ao estômago a energia que me garantirá o calor da 
noite.

Mais lenha na salamandra e uma olhada para fora mostra sombras negras sobre um campo prateado, denunciando uma lua cheia de respeito. Como um espelho redondo e irregular, o astro vai refletindo a luz do sol que ela ainda alcança, por estar mais alta. O vento brando e gelado faz o convite e me apronto com um abrigo grosso e boné. Pouco depois o xulé, meu cachorro parceiro, e eu estamos sentados no meio do campo, de frente para o disco iluminado da lua fazendo um brinde de um bom vinho com a noite. Fico ali até o frio me tocar de volta para a casa quente. O xulé assume seu posto de guarda externo, deitando na frente da porta da casa ao abrigo da área.
O dia que se foi trouxe a noite para compensar. Parece que ela quer mostrar que, quanto mais escura, fria e enluarada, mais vontade me dá de que venha logo um novo dia, claro e quente.  O sono vem ajudar nisso, abreviando o tempo e logo terminando com a noite, assim que domina o meu corpo. O sono é uma boa forma de abreviar a noite.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

O cheiro de cada um


Sei, por força do meu ofício de biólogo, que todo o animal tem seu cheiro próprio, uma espécie de identidade aromática individual. A pele dos mamíferos é rica em glândulas de vários tipos e funções, sendo que algumas secretam odores específicos e que podem diferenciar espécies e mesmo os sexos entre indivíduos do mesmo grupo.
Intrigado com este assunto resolvi, quando ainda era aluno na universidade, descobrir qual era o meu verdadeiro cheiro. Num verão daquela época fui acampar numa fazenda no Passo do Esse, na margem direita do rio Tainhas. O objetivo era descobrir o meu verdadeiro cheiro de mamífero humano, nascido e mantido limpo por 22 anos. O único material de higiene que levei foi a minha escova de dentes, o resto da mochila tinha roupas e comida.

Passei uma semana inteira sem sabonete, desodorante ou qualquer outro artifício químico que me removesse as secreções invisíveis da minha pele. Assim comecei a semana tomando banhos de rio sempre que o calor exigia, podendo ser várias vezes por dia, porque o calor era muito. Dia após dia fui notando mudanças na minha pele que ficou mais oleosa e mais resistente. A água era repelida cada vez com mais vigor, devido a gordura que se acumulava e que a água não removia, sem os sabonetes habituais.

Lá pelo quarto dia já sentia o meu cheiro próprio, não repugnante, mas forte e com uma identidade que me impressionou. 22 anos removendo estes elementos de identificação individual e de repente ali estavam eles, sem ressentimentos e com toda a sua força e característica. Misturado ao cheiro próprio, ainda tinha um toque de fumaça da fogueira do acampamento, que mantinha tudo com aquele cheiro de lenha queimada. O cabelo mais forte e mais duro, evidentemente, era alinhado apenas com os dedos. Sim, naquela época eu ainda tinha cabelos!


Descobri que é possível viver limpo sem usar de nenhum destes produtos de uso diário. Higienizava os dentes apenas com escova e água. Criei um cheiro próprio forte, constante, agradável e que me identificava profundamente com o ambiente onde eu estava vivendo. Socialmente é impossível viver desta forma, porque num ambiente de perfumes de vários tipos e intensidades, o cheiro de uma pessoa que não os utiliza, torna a convivência impossível. Sabia disso quando voltei e vi na expressão da minha mãe toda a angústia e preocupação: “por onde tu andou guri, vai tomar um banho. ”

Ali terminou minha experiência de conhecer melhor o meu cheiro. Levou quase uma semana para o meu cabelo voltar a ser como no dia que fui acampar. Ele simplesmente se recusava a ficar como antes. Parece que ouvia e sentia o protesto silencioso da minha pele dizendo que se recusava a voltar ao seu estado anterior, sem seus cheiros próprios. Agradou-me muito a experiência e compreendi mais um pouco da importância que os odores próprios desempenham nas sociedades dos animais. Seja para bem receber ou para bem rejeitar o indivíduo do convívio com o grupo.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

O ambiente natural de Canela, RS - Brasil


Canela é uma cidade serrana, assentada sobre uma série de nascentes de duas sub bacias hidrográficas. A maior é a do Rio dos Sinos e a menor a do Rio Caí. Dependendo de onde se está, observa-se que as águas correm para um lado ou para outro, dependendo para onde a chuva as atira, ou de onde brotam as nascentes. Desta forma ou elas correm para o arroio Caracol e daí para o Caí, ou são drenadas para o Arroio Quilombo, e daí para o Sinos. É uma cidade privilegiada pela sua geografia devido a abundância de águas e a mistura equilibrada entre campos de altitude e florestas com araucárias.
A zona urbana germinou a partir de um ponto favorável de terreno, como um abrigo natural contra os rigores do clima, e se expandiu para o leste, oeste e norte. O lado sul é escarpado e o mais florestado onde pode-se encontrar ainda uma faixa de vegetação nativa contornando a borda do planalto, na direção do vale do Quilombo e do Morro Pelado. Em direção leste, seguindo para São Francisco de Paula, é possível observar a substituição natural das florestas pelos campos de altitudes, nativos da região e utilizados a séculos para a criação de gado.


Com seus 835 metros acima do nível do mar, Canela tem um clima sub tropical de altitude, onde os invernos são rigorosos e com nevascas eventuais. O rigor do clima é um dos tantos atrativos naturais da cidade no inverno, trazendo visitantes de todo o Brasil, principalmente do norte e nordeste. O frio é o diferencial que encanta mas também espanta.

Araucária na zona urbana da cidade

A floresta de araucárias é uma marca registrada da cidade e da região, exibindo os imponentes pinheiros com seus galhos parecendo aranhas gigantes paradas no céu, ou guarda chuvas virados pelo vento que, na primavera, vem fazer a polinização das pinhas, garantido assim o pinhão do outono. Árvores únicas que só existem no sul do Brasil, as araucárias são relíquias que permanecem por aqui desde o tempo dos dinossauros, junto com os xaxins e outras poucas plantas que não se extinguiram.


Tucano-do-bico-verde, ave frequente nas zonas urbana e rural

Nesta floresta existe uma fauna espetacular, formada por mamíferos, aves, répteis e anfíbios que se utilizam dos frutos, folhas e sementes para sua alimentação. Bugios, tucanos, lagartos, serpentes, aranhas, insetos e uma legião de cogumelos e organismos microscópios fazem a cadeia alimentar se desdobrar em muitos níveis atestando a boa sanidade do meio ambiente.
O campo nativo, que resiste em algumas manchas na área do Palácio do Governo e alguns condomínios próximos, é o testemunho de um ecossistema que que abriga uma fauna diferente, formada por aves de maior porte e de mamíferos pastadores, como os veados e capivaras. Seriemas e gaviões carrapateiros podem ser vistos perambulando mesmo na zona urbana, movidos por motivos alimentares e de expansão de território.
Na zona urbana a vegetação nativa foi praticamente substituída por uma flora exótica originária de diversos continentes, motivado pela estética e pelo ornamental, como os plátanos, aceres e flores de todas as cores, tamanhos e formas que enfeitam jardins e praças. Uma fauna específica se adaptou a zona urbana, aproveitando-se dos abrigos, alimentos e ausência da maioria dos predadores naturais. Assim, sabiás, tico-ticos, saíras, gambás-de-orelhas-brancas, ouriços e muitos outros elementos são relativamente comuns nos jardins e parques da cidade.


Decoração alusiva as festividades do Inverno 2014
Viver por aqui é um exercício interessante, uma vez que exige disposição e resistência ao frio úmido do inverno, prolongado em alguns anos e que exige malabarismos de vestuário. O fogão a lenha e a lareira são elementos presentes em quase todas as casas, hotéis e pousadas. O cheiro de lenha queimada perfuma as ruas da cidade nos dias gelados, fazendo um contraponto interessante com o frio externo, convidando aqueles que estão nas ruas desfrutando o visual do frio a entrarem para participar do ritual do fogo, comerem um pinhão assado e beberem um chimarrão ou um bom vinho tinto. A fumaça da queima de lenha de acácia é como um sinônimo do inverno na região. As chaminés perfumam a cidade com sua fumaça branca anunciando a estação fria, como em Roma ela avisa a chegada de um novo pontífice. 


As festas se tornaram marcas registradas da cidade, como o Sonho de Natal, Festival de Bonecos, Festa da Colônia, Páscoa e Festival de Inverno que atraem milhares de pessoas de todo o Brasil de do exterior. Os finais de semana lotam de curiosos que se deliciam com as decorações sempre muito criativas e interativas, e aproveitam da excelente gastronomia oferecida nos restaurantes do centro da cidade.


Cachoeira do Poço, no Ecoparque Sperry
Canela é uma cidade de muitos parques naturais. Na sua zona rural existem muitos locais dedicados ao convívio com a natureza, sendo o mais visitado o Parque do Caracol. Na direção sul temos o Vale do Quilombo que abriga o Ecoparque Sperry, um santuário natural com cachoeiras e matas preservadas. Há no município mais de 20 parques naturais e temáticos, criando atração para todos os gostos e bolsos.
Assim é Canela, uma cidade serrana pequena, mas com um coração tão grande que pode abrigar qualquer um que venha conhecer suas virtudes, tanto aquelas da natureza quanto aquelas da zona urbana e de seus moradores.






quinta-feira, 5 de junho de 2014

No âmago do Vale do Quilombo


Base da Cascata do Trombão

Gosto de explorar um lugar novo, desconhecido e recentemente participei de uma caminhada pelo interior do Vale do Quilombo, partindo do Ecoparque Sperry, com um grupo de amigos e interessados inseridos no programa Ecoparque Explorer. Logo me vi na base da Cascata do Trombão, um lugar intrigante, sombrio e com um barulho de água caindo que abafa até os pensamentos mais profundos. O local remoto é um refúgio natural de fauna e com uma flora praticamente intocada. Dentro do mini cânion, moldado pela força da água ao longo dos milênios, segui o grupo pelo leito do arroio com suas águas cristalinas e de temperatura agradável. 

Leito do Arroio Trombão

Rochas de todos os tamanhos pavimentam o caminho abraçadas por cipós e raízes de diversas espécies de arbustos e árvores. Nas cheias do inverno árvores e arbustos são arrancados, triturados e jogada para frente, formando depósitos impressionantes de material de todos os tipos, tamanhos e texturas. Estes mesmos depósitos, juntos com as pedras, vão formando anteparos que mudam o curso do arroio e o fazem lamber a outra margem, cavando e arrancando outras árvores. É a dinâmica do leito do arroio. Natural como a chuva e o vento. Isso torna a caminhada interessante devido a diversidade de locais, formas e quadros naturais formados ao longo do percurso.

Encontro dos arroios Trombão com o Quilombo

Chego no ponto onde o Arroio Trombão deságua no Arroio Quilombo formando um local ideal para banho. Com água pelas canelas e desviando de pedras lisas, sigo o leito do Quilombo através de belíssimos lajeados cobertos pelas copas das árvores altas permitindo uma caminhada tranquila pelo leito rochoso emoldurado por bromélias floridas, figueira gigantes exibindo suas raízes tabulares e muitas espécies de samambaias e musgos cobrindo barrancos, troncos, raízes e rochas.



Toca dos Bugres, com a cachoeira à esquerda


A caminhada pelo leito é interrompida no topo da Cachoeira da Toca dos Bugres. A visão é espetacular pela altura e arrojo da água a quase trinta metros abaixo, formando degraus no leito que atiram as águas em um poço escuro abaixo. Todos deslumbrados, apreciam a seu modo o lugar. Sentados olhando, andando e fotografando, conversando.... A esquerda visualizo a entrada da grande gruta dos bugres. Contornando pela esquerda, chego a base da cachoeira e assomo a caverna ampla, alta na boca, como uns dez metros de altura e vai morrendo em zero como uma cunha de ar que abriu a pedra e formou um abrigo natural. 

Cachoeira da Toca dos Bugres, Arroio Quilombo

A cachoeira da Toca dos Bugres vista de baixo  é espetacular. Os degraus bem visíveis tornam o visual ainda mais impressionante, espalhando a água branca por fios e cascatas de vários tamanhos e volumes. Um lugar realmente diferenciado e digno de uma jornada de reconhecimento, feito aqui pela equipe do Ecoparque Sperry, e que não deixa outras sequelas que não a de roupas e botas molhas e embarradas, daquele jeito que, quando em casa, dá vontade de não lavar e deixar como recordação de um dia muito especial. Sem falar na ânsia de descarregar as imagens no notebook e apreciar o dia transcorrido. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O dia a noite e o céu de São José dos Ausentes, RS


O céu de São José dos Ausentes é o mesmo que cobre Canela, onde moro. O que muda então? O que o torna aparentemente diferente? Acho que é a soma de alguns fatores, a começar pelo horizonte amplo e com quase 180° de visibilidade. O campo dobrado com suas coxilhas arredondadas e destacadas no meio da paisagem permitem uma visão paradisíaca do ambiente. O pincel invisível que pinta as nuvens, cria verdadeiras obras de arte efêmeras como a sombra que projetam no campo. Os riscos paralelos foram de pinceladas rápidas, com pouca tinta, Já os acumulados denunciam o repouso do pincel, como se o criador do quadro estivesse pensando o que fazer. No conjunto, a obra mutante é um espetáculo.

Durante o dia ou à noite, o espetáculo é garantido porque se a lua está cheia, ou quase, a luminosidade tênue e prateada pinta a mesma paisagem com outros tons, como se dois quadros fossem pintados por dois artistas a partir do mesmo ponto.


Araucária em campo nativo 

Uma araucária isolada no campo parece o pincel que pita o céu, com seus galhos apontando para o alto, tangíveis no azul infinito. O quadro do dia,  com suas cores vibrantes e claras, faz o verde se destacar no fundo azul. No solo  a grama amarelada denuncia o final do verão, época de mudanças cromáticas na paisagem. A luz quente e clara do sol alegra tudo, fazendo as aves revoarem, cantarem ou gritarem, dependendo da sua genética. Tudo assume um ar de festa com a luz que tudo mostra e aquece.




Araucária em campo nativo sob a luz da lua cheia


Voltando ao mesmo local a noite, vejo o azul do céu escurecido, o que permite a visualização das milhares de estrelas que vivem espiando nosso planeta. O verde fica indefinido e as estrelas das Três Marias se abrigam sob os galhos da araucária, como se estivem procurando abrigo nesta imensidão do céu sem um local para se abrigarem do vento. O capim, pardo pela falta de luz, continua apontando suas espigas com sementes para cima, a espera do vento que as levará para longe, garantindo a nova geração do capim-caninha, nativo destes campos de altitude. O silêncio e o ar gelado do momento me remete as noites de acampamento, quando vagava pelos campos dos aparados da serra em noite de boa lua cheia.




Rio Silveira, São José dos Ausentes

A visão pela manhã do vale do Rio Silveira enche a alma com uma mistura de encanto, cores e estupefação. Fico olhando o quadro dinâmico e mutante a minha frente, vendo a água mudando de lugar e as sombras explorando outros recantos, escurecendo o que estava iluminado e deixando a luz mostrar o que escondera à pouco. Lentamente, de leste para oeste, esta mutação de cores e luzes vai migrando, assim como a temperatura que sobe, como se estivesse com ciúmes da luz
que pinta tudo de uma beleza rara e deixa o ambiente cada vez mais iluminado.


Rio Silveira sob a luz da lua cheia.



A noite, no mesmo local, a luz da lua cheia permite a visualização de alguns fantasmas e fazendo o movimento das águas do Rio Silveira parecer um caudal de prata líquida e fria, algo só possível no imaginário de quem está diante deste imponente e barulhento elemento natural com o espírito preparado e desarmado para ver aquilo que ali se apresenta. A noite o campo torna-se um lugar de respeito aos sentimentos que emergem da memória e saltam para fora, compondo o quadro, junto com a lua que abre passagem pelas nuvens no leste do vale. Pensamentos e paisagem se misturam e dançam  a música inaudível da paisagem. Passar um dia e uma noite por aqui me faz ver como a natureza pode ser impressionante, mesmo sem a presença do homem. Aliás, acho que é por isso que ela me impressiona.






domingo, 1 de junho de 2014

Cogumelos, conhecimento e culinária.




Suillus luteus, comestível.
Ver um cogumelo qualquer em um campo ou sobre um tronco morto de alguma árvore é ver apenas a ponta de um processo muito complexo e invisível. Na verdade o cogumelo é apenas uma fase da vida de um fungo que vive sobre a matéria orgânica morta. Os fungos tem um corpos longos, ramificados como raízes, esbranquiçados, quase sempre invisíveis e são um dos maiores responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica nos solos do planeta.
Infiltram-se nos tecidos mortos de plantas e os digerem lentamente, transformando troncos, galhos, folhas, etc. em produtos reutilizáveis por outros organismos do mesmo ambiente. Fazem um trabalho silencioso e importantíssimo sob a óptica da sustentabilidade da vida na terra.

Quando estão bem desenvolvidos e as condições externas são favoráveis, eles enviam ao exterior os responsáveis pela liberação dos esporos, as micro estruturas que, como as sementes de plantas que conhecemos, tem a capacidade de formarem novos fungos em novos lugares. Assim surgem os cogumelos, ou “chapéus de cobra”, como são popularmente conhecidos. Nesta hora os fungos do solo se tornam visíveis e nos permitem a sua identificação.

Auricularia sp - comestível
Sendo a maioria desconhecidos completamente pela população, paradoxalmente eles encantam e causam apreensão nas pessoas. O desconhecido sempre é encarado com desconfiança e é assim com os cogumelos também. Não temos aqui no Brasil o bom hábito de colher cogumelos silvestres e transformá-los em ricas refeições nutritivas e saudáveis. Na Europa é recorrente o hábito de nos outonos as pessoas seguirem para bosques e campos atrás destas iguarias. Eles conhecem os bons para a mesa e os impróprios. Está no comportamento dos povos. Aqui ainda não desenvolvemos este hábito, com poucas exceções, apesar te termos em nossos ambientes de matas e campos, uma riquíssima variedade de espécies próprias para consumo humano. Neste outono já fiz vários pratos com pelo menos três espécies de cogumelos que coletei aqui no sítio onde moro, no Vale do Quilombo. Basta uma volta pelas matas e uma cesta para acomodá-los e preparar uma refeição completa. Vale a pena investir em um pouco de conhecimento sobre este assunto porque pode muito bem nos trazer grande satisfação à mesa, além de se um produto essencialmente natural e colhido direto da natureza, sem problemas de contaminação por agrotóxicos ou outros elementos químicos.


Lactarius deliciosus - comestível.
Preste mais atenção em suas caminhadas neste outono e perceba a variedade de cogumelos que surgem em todos os lugares. Informe-se em guias de identificação com fotos ou com algum especialista e não deixe de experimentar esta iguaria que tem gosto de natureza. A foto ao lado é de um Lactarius deliciosus, nome científico porque não tem um popular ainda, de um dos mais saborosos cogumelos que nesta época estão por toda parte onde tenha pinus, sua árvore favorita para compartilhar o seu modo de vida. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Por dentro do Itaimbezinho



Um dia do verão de 1977 ou 78, não lembro bem, um grupo de seis colegas parceiros de aventuras da minha turma da Biologia da PUC, seguiu de ônibus de Porto Alegre para Cambará do Sul. Pouco antes de Cambará, saltamos e caminhamos uns 15 quilômetros até o parque por um acesso que hoje está fechado. Acampamos uns dois dias por lá caminhando por cima e conhecendo detalhes da geografia que hoje é vedado aos visitantes, como um pinheiro multissecular que tem junto a uma floresta primitiva de xaxins,
porque naquela época, era possível caminhar pelo parque todo. Numa madrugada bem cedo, ainda meio escuro, começamos a descida pelo vértice, ali onde hoje tem um mirante que se vê o início da fenda. Decida difícil por ser muito íngreme o local provocando escorregões e tombos de pequena importância, mas fomos seguindo com calma e cuidado. Chegamos ao fundo do vale e nos deparamos com o poço da cascata das Andorinhas.
É ali o grande obstáculo inicial. Como atravessar aquele poço com água batendo violentamente pela direita e um paredão de rocha negra e lisa a esquerda.  Só nadando uns 20, talvez 30 metros até o outro lado. Sem um plano B, amaramos bem as mochilas às costas, não sem antes isolar o máximo de roupas e alimento em sacos plásticos, e cada um foi nadando do seu jeito até a outra margem, tentando manter a mochila ao máximo fora da água. Com tudo molhado, menos o que estava bem embalado seguimos pelo leito do rio do Boi e acredito que foi ali que comecei desenvolver a habilidade de saltar pedras e evitar quedas em trechos de rios e arroios. O resto do dia foi este o exercício, cruzando inúmeras vezes de uma margem a outra e seguindo devagar e firme pelo lugar mais fácil, ou menos difícil. Num trecho o rio do boi simplesmente some, correndo por galerias subterrâneas formadas pelas toneladas de rochas de todos os tamanhos que, com o tempo, vão se desprendendo dos paredões laterias com os movimentos provocados por trovoadas e pela ação erosiva da água. Apesar do dia esta ensolarado, a penumbra era permanente no fundo do vale. 

Perto do meio dia a surpresa: o sol começou entrar e iluminar o cânion por dentro, alegrando e aquecendo a todos. Primeiro a luz veio pintando a parede leste e, devagar como um passeio de tartaruga mas firme e constante como as águas de um rio de planície, veio descendo até o fundo, clareando pedras e água, musgos e líquens, insetos, plantas e pessoas. Na mesma velocidade preguiçosa, foi subindo o lado oposto até desaparecer, me deixando com uma ponta de inveja pela capacidade que a luz tem de ignorar obstáculos.  Paramos para reverenciar o fenômeno porque sabíamos que duraria pouco, e assim antes da uma hora da tarde estávamos novamente na sombra do vale.

Terminamos o dia bem na altura do cotovelo, aquela primeira grande curva que o Itaimbezinho faz em direção ao leste e que se observa em cima, no Mirante do Cotovelo, no final da trilha homônima. A nossa direita descia a água da Cachoeira Véu de Noiva, vista de cima no mirante do Cotovelo. Contrariamente ao caso da cachoeira das Andorinhas, aqui não se forma um poço devido ao vale ser mais largo e o  volume de água ser menos. Assim foi tranquilo a passagem pela base desta imponente queda de mais de 700 metros. Lá escolhemos as pedras mais altas e nos instalamos para comer e dormir, já que a prudência dizia que qualquer chuva forte nas cabeceiras do rio Perdizes poderia inundar o vale rapidamente. A noite passou tranquila, sem incidentes e apenas com o murmúrio do rio se debatendo contra as pedras do seu leito. Fiquei olhando aquela faixa estreita de estrelas que se abria acima de nós e senti a opressão e o encanto do elemento natural pouco convencional.

Na manhã seguinte continuamos caminhando pelo leito do rio e notamos uma progressiva abertura da parte superior do cânion, indicando seu alargamento natural. Sem vestígio algum de pessoas e raros animais, seguimos o dia todo em uma caminhada mais tranquila, com pedras menores e o rio um pouco mais largo, o que foi facilitando o deslocamento do grupo. Muitos lugares para se tomar bons banho e inúmeras cachoeiras menores enfeitam todo o trajeto, ficando impossível saber seus nomes, com exceção das duas citadas no primeiro dia que são as maiores.  Num determinado ponto encontramos as maiores gúneras, também conhecidas com urtigão, que já vi até hoje. Cada uma de suas folhas gigantes tinha mais de dois metros de largura, podendo envolver completamente um de nós. São plantas raras e que só se desenvolvem nestas gretas dos aparados da serra e em alguns locais do Andes.


Final do segundo dia e todos feliz, sujos, molhados, saudáveis e famintos, chegamos a civilização, e nos vimos em pleno centro da cidade de Praia Grande, em Santa Catarina onde passamos a noite, que já chegava pesada e negra. Pela manhã seguimos de ônibus até Torres e de lá para Porto Alegre. Nos últimos lugares de trás do ônibus estava um grupo de jovens esfarrapados, sujos, com mochilas e roupas ainda molhadas mas com uma felicidade absurda na alma, algo que nunca mais se apagou de nenhum de nós.