segunda-feira, 28 de abril de 2014

Os caminhos do gado




O gado foi introduzido no Rio Grande do Sul por volta de 1628 pelos Jesuítas lá pela Região Missioneira, bandeados do outro lado do rio Uruguai. Animais estranhos a paisagem, trazidos inicialmente da Europa por navios a vela, aqui logo foram se adaptando e ocupando espaços na vastidão dos campos que havia em mais da metade da cobertura vegetal natural do Rio Grande do Sul. Lentamente foram se multiplicando e se espalhado por onde havia campo nativo, e aqui pelo Campos de Cima da Serra, no nordeste gaúcho, chegaram também com os Jesuítas quase cem anos depois, fugindo das Missões, uma vez que eram vítimas dos assaltos dos Bandeirantes paulistas que vinham prear escravos indígenas.

Logo surgiram as fazendas e estâncias de grande porte aqui na região serrana, dividas por quilômetros de taipas de pedras feitas com mãos de escravos negros e índios.  Lentamente o gado foi imprimindo uma morfologia típica em alguns lugares acidentados, formados por coxilhas altas e íngremes. Estes bovinos tem uma tendência de se deslocarem pelas curvas de nível dos terrenos acidentados, economizando a energia que gastariam para subirem ou descerem em linha reta ou em diagonal.

Na foto ao lado é possível ver o gado se deslocando pela encosta de uma coxilha alta e as marcas deixadas pelas trilhas paralelas que, vistas de longe, dão a impressão de degraus ou patamares bem nítidos ao longo da encosta. Visões semelhantes, mantidas as proporções, são as dos patamares de plantações de arroz que se veem em países orientais, como China e Tailândia. Quando a necessidade obriga, homens e animais mostram um padrão semelhante de adaptação na utilização dos terrenos adversos. Os orientais pela necessidade de terem terras planas para irrigarem o arroz e aqui os bovinos pela sabedoria de menor esforço diante de um terreno tão adverso.
Quem anda pelo campo nestes locais percebe que nestas trilhas do gado os cascos, com a paciência bovina de anos seguidos, aplainam o terreno e criam uma trilha perfeita para o deslocamento deles e de pessoas. Profundas as vezes e cobertas pelo capim em outras, são excelentes para uma caminhada pelos costados destas altas coxilhas gramadas.

Uma vez escapei de uma situação perigosa quando fui surpreendido em uma caminhada pelo campo com a chegada de uma cerração densa, lá pelas bandas do Itaimbezinho. Sentei e fiquei pensando em como me orientar, já que não enxergava a palma da minha mão a frente. Só lembrava que estava indo em direção oposta à da fazenda que estava. Apalpei o terreno e encontrei uma destas trilhas de gado, virei para a direção oposta e calculei que a trilha deveria ir até a fazenda, um caminho natural do gado. Com a ponta das botas ia identificando o terreno nu da trilha e assim fui indo lentamente por mais de uma hora até chegar num local em que o nevoeiro começou a enfraquecer e me mostrou os contornos do galpão e logo o das casas da fazenda. Fui salvo pelos cainhos do gado.



sexta-feira, 18 de abril de 2014

O banho de rio e o fogo




banho na Cachoeira do Poço, no Ecoparque Sperry, Canela RS
Durante a história evolutiva do homem os rios, lagos e oceanos estiveram sempre presentes, marcando a memória ancestral assim como o fogo, a sede e a fome. O rio e o fogo estão muito ligados a minha vida e sempre me deram prazer e relaxamento em geografias tão distantes e diferentes como a montanha e a planície. Num banho de rio a água passa pelo corpo arrancando e levando por diante dores, suores, medos, más lembranças e o calor que incomoda. Tudo segue rio abaixo sem que ele me cobre nada por isso, deixando o corpo em sossego e com um agradável alívio térmico de um bom banho de chuva. O banho de rio é uma troca, onde aquilo que me incomoda é o que a água leva, e o que me faltava, ela traz. Assim é um banho de rio, um exercício completo de relaxamento e reencontro com um elemento da natureza vital e insubstituível.

Curva do Arroio Quilombo no  Ecoparque Sperry, Canela RS
Sempre se renovando, a água de um rio nunca passa duas vezes pelo mesmo lugar e isso faz com que ela me trate sempre como se fosse o primeiro encontro, com toda a sua gentileza de levar o que me incomoda e presentear com o que tem de melhor. Talvez este seja o grande segredo e por isso é sempre muito revigorante e surpreendente. Como um cachorro que gosta muito do seu dono, as vezes o rio quer nos manter juntos para sempre, criando situações sinistras de posse que acabam em tragédia. Mas sabendo lidar com ele, podemos usufruir de sua infinita bondade e habilidade em nos proporcionar momentos agradáveis.

Fogo de acampamento
O fogo, complemento natural da água quando estamos acampados, faz o contraponto perfeito para o equilíbrio de um prazer onírico e atávico, envolto em algum mistério que nos eleva junto com a chama a uma altura invisível.
Curiosamente a água, que nos acalma com seu prazer refrescante, consegue apagar o fogo que nos aquece, parecendo que sente ciúmes das chamas que se elevam e iluminam tudo e todos em volta, coisa que não pode fazer com seu corpo líquido, amorfo e sem luz. Ou talvez o fogo queira ser maior que o rio, quando se alastra em grandes incêndios, e aí a água desce e acaba com a sua pretensão descabida, mostrando que cada um teu seu reino, função e espaço, sendo que o encontro dos dois é ruim para o fogo, já que se extingue e a água, ao sofrer o impacto com as chamas, muda para o estado de vapor, podendo assim fugir para cima e se esconder nas nuvens.    



segunda-feira, 14 de abril de 2014

O Lobo-guará



Os lobos sempre habitaram o imaginário das crianças e na forma mais perversa. Eles sempre eram os vilões das histórias, comedores de gente e que botavam medo nos personagens de histórias infantis que se passavam em áreas com florestas. De fato, havia muitos lobos nas florestas da Europa na Idade Média e estes canídeos imprimiam grande medo nas pessoas e isso acabou entrando na literatura infantil e se perpetuando como sendo um sinônimo de algo ruim, perverso e devorador.  A caça e a ocupação humana extinguiu o lobo na Europa há mais de 150 anos. Somente nos últimos 15 anos é que novas populações de lobos provenientes do leste europeu, recomeçaram colonizar as floresta do oeste. Nos Estados Unidos também tem lobos nativos e eles quase foram levados à extinção, assim como seus parentes europeus. Ainda há populações de lobos selvagens em parques nacionais, como o Yellowstone onde são bem estudados.
Na América do Sul não há lobos como os do hemisfério norte, mas aqui temos uma espécie de cão selvagem de grande porte que os índios já chamavam de Aguará. A composição de Lobo-guará foi provavelmente uma alusão que os colonizadores fizeram a este nosso canídeo em lembrança dos lobos da Europa, que eles bem conheciam.
O lobo-guará é um típico canídeo brasileiro, tendo seu centro de dispersão e maior ocorrência na região do Cerrado no Brasil Central. Sem dúvidas é o maior cão selvagem do Brasil e infelizmente encontra-se ameaçados de extinção. Animal de porte notável, com mais de um metro de altura, tímido e predador de aves e pequenos mamíferos, é raramente visto ou ouvido. Sua extinção está traçada mais devido à destruição do seu habitat do que pela caça. A expansão das lavouras de soja, milho e algodão do Centro Oeste brasileiro, destruiu o maior reduto deste carnívoro. Com poucos espaços restantes, eles começam se deslocar mais para encontrar comida e acabam caindo em outra armadilha: o atropelamento em estradas.


Há 22 anos, criamos um programa de Educação Ambiental aqui em Canela denominado Projeto Loboguará e este nome foi escolhido devido a três fatores importantes: o lobo-guará é o maior cão selvagem nativo do Brasil e da América do Sul; ele está relacionado na listas das espécies reconhecidamente ameaçadas de extinção; ainda há registros de lobo-guará na região dos Campos de Cima da Serra em São Francisco de Paula e Cambará do Sul. Com a constante divulgação dos hábitos e costumes desta espécie, acreditamos fazer uma parcela de esforços no sentido de conscientizar as pessoas mais jovens da importância de se evitar a extinção de uma espécie. Os Ingleses extinguiram uma espécie de graxaim das ilhas Malvinas para poderem crias suas ovelhas. Na Austrália eles extinguiram o Lobo da Tasmânia pelo mesmo motivo, cujo último indivíduo morreu em 1936 em um zoológico. Extinção é para sempre, e perdermos um animal como o Lobo-guará é perdermos uma parte importante do nosso patrimônio natural. E pior do que isso, o fato é irreversível. Para salvarmos nossos carnívoros nativos, como o Lobo-guará, temos que manter seu habitat para que neles encontrem abrigo, alimento e local para criar os filhotes. 

O alerta do por do sol



Vale do Quilombo, Canela - RS

O final de uma tarde ensolarada é como um lamento de cores de tons laranja, amarelo e vermelho se acentuando e marcando o ocaso. Parecendo cores cansadas, vão enfraquecendo e sumindo na escuridão da noite onde se escondem para se recuperarem em um sono invisível, reaparecendo renovadas na manhã seguinte. Apreciar um por de sol de qualquer lugar, é um privilégio da vida, mesmo naqueles locais menos naturais como os grandes centros urbanos. Achar um ângulo certo para apreciar o fenômeno faz com que sintamos a energia emanada do sol que se despede, prometendo voltar na manhã seguinte, como quando nos despedimos de alguém que, sabemos, voltará.

As cores vermelhas e alaranjadas do final do dia resultam de um fenômeno do ângulo de incidência da luz do sol sobre as partículas que existem na atmosfera, sendo mais intensas e belas as cores, quanto mais partículas existirem em suspensão no ar. Esta partícula provém de erupções vulcânica, de descargas de automóveis, de chaminés de indústrias e da queima de vários tipos de combustíveis e assim, como um paradoxo brilhante, quanto mais poluição atmosférica, mais bonito e colorido fica o final de tarde. Parece que o sol quer nos mostrar, através de uma obra de arte luminosa, o quanto estamos afetando nossa atmosfera com resíduos sólidos. Mas as pessoas que deveriam ver e interpretar esta obra/advertência parece que são daltônicas, não percebendo a mensagem cifrada em cores espetaculares. A cada dia o sol se esforça para nos mostrar os nossos erros.


Praia de Itapirubá, SC
Quando a tarde avança para seu final e estamos atentos ao momento, percebemos que há uma sutil mudança de comportamento das pessoas, da fauna e da flora. É a falta crescente de luz e as luzes coloridas de laranja do céu que avisam a todos de que a noite com seu breu e seus mistérios, está a caminho. Animais diurnos se dirigem aos seus abrigos orientados ainda pelas fracas luzes e a fauna noturna é magicamente ativada pela escuridão que se aproxima. Aquele pequeno intervalo de tempo entre a pouca claridade do final do dia e a escuridão total da noite nos mostra que a falta de luz não significa o final das atividades na natureza, e que mesmo na escuridão, as coisas continuam com outros olhos e olhares. 


São Miguel das Missões, RS.
Enquanto isso, vamos fazendo o possível por aqui, na escala minúscula de ação local, desenvolvendo atividades de ensino da Educação Ambiental através do Projeto Loboguará para que possamos ter líderes futuros que possam ver no por de sol algo mais do que a beleza das cores que o sol está nos enviado. 

terça-feira, 8 de abril de 2014

A identidade sonora da paisagem





Cachoeira do Poço, Ecoparque Sperry, Canela RS.
Quando no planeta Terra ainda não existia nenhuma forma de vida vagando pelas águas, terras ou ar, os únicos sons que existiam eram os próprios da natureza, como o trovão, o vento açoitando rochas, a água debatendo-se em seu caminho nas margens e cachoeiras, os vulcões vomitando as entranhas da terra e as ondas do mar quebrando nas praias. Estes eram os sons que identificavam as paisagens da terra ancestral, chamados tecnicamente por Bernie Krause de geofonias, ou os sons da terra.

Rio Silveira em São José dos Ausentes RS.
Por volta de uns seiscentos milhões de anos atrás, começaram surgir as primeiras formas de vida nas águas rasas dos oceanos e daí em diante apareceram sempre novas espécies que começaram povoar as águas, as terra emersas e o ar. Cada nova forma que surgia tinha que criar mecanismos de comunicação para se relacionar com os seus parentes e com o mundo ao seu redor, podendo esta comunicação ser química, tátil ou sonora, criando-se assim cheiros, cores e sons próprios. Assim, ao longo dos milênios, a evolução foi criando uma verdadeira orquestra de milhares de instrumentos compostos pelos sons, timbres e melodias que cada espécie desenvolveu para se manter vivo, conhecer os perigos do ambiente, encontrar alimento e reconhecer parceiro para acasalamento. Assim foi surgindo, lenta e progressivamente, um segundo grupo de sons, estes produzidos pelos seres vivos, e que são denominados genericamente de biofonias (bio = vida e fonia = som).
Os animais aprenderam o significado dos sons do ambiente onde viviam e passaram a utilizá-los para seu benefício, além de criarem, cada um a seu modo e necessidade, sua própria identidade sonora. Acredita-se que a música com toda sua complexidade de timbres, como conhecemos hoje, de alguma forma evoluiu de sons que copiamos de algum ritmo natural ou manifestações sonoras da natureza e de outros animais.


Cânon Monte Negro em São José dos Ausentes RS.
Seguidamente me posiciono no campo ou dentro da mata e fico escutando os sons locais e vejo que eles variam com a hora do dia, a estação do ano e com o clima. Cada floresta, campo, banhado, rio, montanha ou deserto tem seus sons próprios e ouvi-los é um exercício altamente relaxante. Esta mistura de sons geofônicos e biofônicos constituem sinfonias únicas, com identidade de lugar e tempo. São as chamadas identidades sonoras, ou identidades acústicas de um lugar. Assim como o som de um aglomerado urbano que mistura ruídos de veículos, pessoas, vozes, sirenes e músicas – chamados de antropofonias (antropos = relativo ao homem e fonia = som), na natureza existe o mesmo, apenas que mantendo sua proporção, fonte geradora e identidade. É possível assim reconhecer lugares apenas ouvido os sons ambientes do mesmo, um estudo relativamente novo e que implica equipamentos especializados de gravação e muito conhecimento de música para a interpretação. Mas é um mundo novo que se abre ao deleite do ouvinte atento e ao conhecimento do nosso planeta e dos seus habitantes, sempre se relacionando entre si e com o ambiente. Para os mais apaixonados pelo assunto, sugiro o livro A grande orquestra da natureza, de Bernie Krause. 

sexta-feira, 4 de abril de 2014

As dunas, a vegetação e a resilência






As dunas do nosso litoral, também conhecidas por cômoros, são aquelas pequenas elevações formadas de areias brancas que se acomodam entre o mar e as primeiras ruas e casas das praias do nosso retilíneo e tedioso litoral. Esta areia vem da praia, de dentro do mar e é empurrada para fora pela água. Na sequencia, o vento seca e empurra os grãos para o continente e vai acumulando em montículos que vão crescendo e se transformando em dunas. Quando o vento muda de direção, assopra a areia de volta para o mar e assim as dunas crescem e decrescem de tamanho, mudam sua forma e posição constituindo-se em verdadeiras montanhas moveis. Um dia aqui, outro invadindo ruas e casas (na verdade estes últimos é que invadiram o espaço delas), sempre ao sabor do vento.

Sobre estas dunas costeiras moveis existe uma vegetação que tem grande capacidade de sobreviver a estas mudanças constantes na forma e posição das areias. Um dia podem ser vistas espalhadas por cima da duna e pouco depois, enterradas alguns centímetros abaixo para logo mais estarem novamente no topo. Elas sofrem a pressão da areia, ficam no escuro, se deformam e assim que ficam livres, reconstituem sua forma e seguem a vida. Resiliência é a palavra que define esta capacidade que as plantas tem de sofrerem reveses constantes, se recuperarem e continuarem vivas. As plantas são assim permitindo que as comparemos com algumas situações da vida diária.
Quantas vezes somos soterrados por problemas aparentemente insolúveis e, de repente, a areia é soprada de cima de nós e o sol brilha novamente vindo com ele as soluções e a vida segue. Assim como uma planta das dunas é dobrada, amassada e coberta pelo peso da areia durante um tempo, ressurgindo depois, nós também somos submetidos a períodos de um aparente estado de impotência e opressão quando nada parece dar certo. Devemos aprender a ter a paciência e a resiliência das plantas de dunas, por que uma hora ou outra a areia vai sair de cima e vamos reassumir nossa postura anterior mais fortes e mais preparados para o próximo embate.


A resiliência é esta grande capacidade que nos foi dada para resistirmos a ações do meio ambiente e, por extensão, também das complexas relações sociais a que somos submetidos.  O que devemos fazer é aguardar o vento assoprar a areia e nos desenterrar para vermos que as soluções existem e chegam sempre na sua hora, assim como o vento na praia. A nossa areia são os nossos problemas diários que muitas vezes nos sufocam a ponto de acharmos que não sairemos mais debaixo deles. Mas sempre tem um vento para movê-los para outro lado, ou para cima de outros. Mesmo sabendo que eles vão voltar, temos um tempo para crescer e aprender, o que vai nos tornado mais fortes. Somos como plantas de dunas, vivendo em um mundo instável que constantemente nos submete a provações de todos os tipos, e neste cenário complexo resistem mais aqueles que compreendem isso e aguardam a próxima ventania de areia mais preparados.